Chegada a Altamira

Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, pernas doloridas das picadas de pium, cidade silenciosa e deserta ao redor

Depois que a Hilux do generoso fazendeiro de gado e madeira nobre nos deixou na avenida Alacid Nunes, uma das grandes vias aqui de Altamira, e que contemplamos cansados e aliviados o rio Xingu a partir da varanda daquele restaurante, fomos procurar a casa da Wanessa e do Wanderson, que com cuidado enorme têm nos acolhido na cidade.

Logo encontramos a torre da tevê Liberal, que era nosso ponto de referência. (O grupo Liberal é o maior monopólio paraense de comunicação: dono do principal jornal de Belém, de emissoras de rádio e da retransmissora da Globo no estado. Depois descobrimos que a cidade de Altamira não tem jornal impresso próprio e, como mídia local, conta apenas com telejornais em três canais de tevê; a única voz dissonante é a da emissora Santa Terezinha, de propriedade da Prelazia do Xingu.) Em casa nos juntamos ao Marcinho, chegado no dia anterior. Delicioso e inusitado isso de matarmos as saudades dele em Altamira.

Pensávamos que descansaríamos do trajeto para finalmente começar, no dia seguinte, as conversas e visitas que ansiávamos por fazer. Mas alguém teve a lembrança de que seria bom darmos um alô pessoalmente a Dom Erwin, bispo da Prelazia do Xingu (sua biografia está aqui http://pt.wikipedia.org/wiki/Erwin_Kr%C3%A4utler), com quem tínhamos marcado uma conversa para a tarde daquele dia que, infelizmente, o tempo das caronas tornou impossível.

 

Banner no escritório do Xingu Vivo homenageia a luta do bispo Dom Erwin.

 

Verificamos no mapa o endereço da Prelazia e nos pusemos a caminhar. Nosso bairro aqui na cidade fica a uns 30 minutos de caminhada do centro (que beira a orla do rio). No trajeto Altamira se apresentava a nós, noturna, estranha e mutante. Perguntamos em três ou quatro pontos onde poderíamos encontrar o bispo, até chegarmos à catedral de Altamira, em que Dom Erwin terminava, paramentado sobre o altar, de celebrar a missa do segundo dia da novena de São Sebastião — padroeiro do município. Sentamos nos bancos do fundo da igreja, e nosso alô se transformou num aperto de mão em que desejamos a paz de Cristo ao prelado do Xingu.

Aguardamos o bispo ao final da celebração. Vimo-lo entrar novamente na nave por uma porta lateral ao altar, um homem altivo e sereno em camisa pólo, caminhando em passos firmes e trazendo papeis sob o braço. Nos viu e disse “Ah, eu sabia que eram vocês. Quem é a Diana?” — inquirindo entre as duas mulheres do grupo para saber qual era aquela que lhe havia feito os telefonemas.

Conheceu a Diana e elogiou seu piercing de argola no nariz. (“Oh, que bonitinho!”, e uma risada solar.)

Conheceu a todos nós, contou que no dia seguinte pela manhã o Movimento Xingu Vivo Para Sempre se reuniria, disse que telefonaria à sua presidente para saber se poderíamos comparecer ao encontro, e combinou de nos ligar em seguida confirmando nossa ida e informando o endereço.

Deixou a igreja secundado pelos dois seguranças que o acompanham. Da mesma maneira que os bispos de Santarém, Alenquer e Marabá, o prelado de Altamira está sob ameaça de morte graças à sua militância em favor da justiça social e dos povos da floresta.

O celular do Marcinho tocou quando estávamos já a caminho de casa, depois de comermos mingau na saída da missa (mingau é o nome que aqui se dá ao que chamamos, em São Paulo, de canjica) e conversarmos com Ângela e Eduardo, ela altamirense e ele belenense, um casal muito ativo na comunidade eclesial da Prelazia, que vive há três décadas na cidade mas que se muda ao final de fevereiro para Santarém. O filho deles já estuda lá, o que forneceu o pretexto que faltava para que eles fugissem do que veem como o caos tomando conta de Altamira. As histórias e histórias que nos contaram durante os cinco quarteirões que caminhamos lado a lado foram uma pequena (e já impressionante) amostra dos alucinantes impactos, já gritantemente visíveis, que a população e o espaço urbano de Altamira sofrem com as movimentações do Consórcio Construtor de Belo Monte desde o início de 2011.

O hotel começa a ser construído agora, já sabendo que pode negociar seus leitos com doze meses de antecedência. O mercado da cidade está inflacionado com a presença do CCBM.

Sede do Movimento Xingu Vivo, disse Dom Erwin por telefone ao Márcio: esquina da rua Sete de Setembro com a rua Lindolfo Aranha, em frente ao Hotel Lisboa, que foi comprado pelo Consórcio Construtor de Belo Monte como uma das muitas diferentes estratégias para abrigar a enorme quantidade de trabalhadores seus que precisam se hospedar na cidade.

De Rurópolis a Altamira

Ainda falta contar tanta coisa: o difícil começo do segundo dia de caronas, o fato de quase termos pego carona com uma picape da Eletronorte, o garimpeiro de Itaituba que nos levou até Placas, as duas picapes em que nos dividimos até Uruará, o caminhão de extração ilegal de madeira que foi a carona mais tensa que pegamos e nos deixou numa localidadezinha sem nome pouco antes de Medicilândia, o depósito de cacau atrás do qual havia uma ducha abençoada e que escondia a água gelada mais deliciosa do planeta, e a Hilux preta do fazendeiro de gado que nos levou no último trecho, passando por Brasil Novo e chegando a Altamira.

 

Outdoor patrocinado pelo corrupto senador paraense, que mesmo barrado nos critérios do Ficha Limpa conseguiu no grito assumir seu mandato no Congresso. Nos dava um azar danado, fomos pedir carona em outro lugar

 

 

De Santarém a Rurópolis

Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre 

Começamos a vinda de Santarém para cá no dia 11 ao meio-dia, levantando uma plaquinha que dizia “Altamira” e outra que dizia “Rurópolis” em frente a um posto, na saída da BR-163. Nessa ponta, a rodovia Cuiabá-Santarém é razoavelmente ampla, razoavelmente asfaltada, razoavelmente sinalizada e merece razoavelmente o nome de BR. Um senhor e um rapaz aguardavam um ônibus perto de onde estávamos, e vieram solícitos dizer que não era costume por aqueles lados os motoristas pararem para dar carona. Outro caminhoneiro veio nos oferecer um marmitex, e disse que não conseguiríamos nenhuma carona ali, coisa que ele sabia depois dos 40 anos em que pegava a estrada. O dia parecia mesmo promissor.

 

Ao pegar caronas, comunicação é tudo.

 

Convicção também.

 

Quem primeiro aceitou nos levar foi o motorista de um ônibus que ia para a localidade de Açaizal, 72 km à frente. Depois de poucas horas de trajeto, e incontáveis paradas em lugares bem improváveis (a última foi o quintal de uma família), ficamos bem na frente da entrada da Flona Tapajós, antes que o ônibus pegasse o acesso para a cidadezinha.

Placas velhas e carcomidas indicando o mapa e as informações principais da Floresta Nacional, um guardinha com a rede armada na guarita, xixi no mato, besouro enorme lindo e azul à beira da estrada, e muito sol na cuca.

 

Flona do Tapajós

 

Ali conhecemos Edson, nossa próxima carona, jovem funcionário da Cargill que nos levou até aproximadamente o km 100 da rodovia. Apesar da formação na área de economia e finanças, sua função na multinacional é a de fiscalizar as fazendas produtoras de soja que tomaram financiamento da companhia para comprar as sementes e iniciar o plantio. Segundo ele, sua atividade consiste em garantir que os agricultores estão plantando mesmo e numa área desmatada antes de 2006, ano em que houve anistia geral para a supressão ilegal de floresta. Caso tenham aberto novas áreas, não poderão vender à Cargill a soja plantada nelas, tendo que dar outro destino para essa colheita. Por razões de mercado (compradores europeus), a soja plantada nas fazendas da região é convencional (não-transgênica), sendo exportada diretamente pela unidade portuária da empresa em Santarém, construída a partir de 2000 e inaugurada em 2003. Do lado de fora da janela, a fala de nosso solidário motorista vai ganhando ilustrações em tempo real: áreas enormes de campo aberto (plantações) contrastam com a a mata fechada que, nesse ponto, já se apresenta mais como interstícios do que como visão preponderante. É a soja na Amazônia.

De volta ao asfalto quente, paramos no alto de uma colina leve, visão privilegiada da longa estrada que corta a floresta. Uma moto se aproxima e pára ao nosso lado: “- Vocês tem água?”. Titubeamos sem saber se aquilo era um pedido ou uma oferta generosa. Depois de um longo gole em nossa garrafa, o motociclista nos contou como conseguiu salvar um desconhecido que encontrou poucos momentos antes, à beira de uma estrada rural, picado por uma cobra. Havia acabado de deixar o vitimado num Batalhão do Exército alí próximo, já meio verde-pálido pela ação do veneno. Em poucos instantes vimos passar no sentido contrário a ambulância de cor escura-militar, rumo ao hospital de Santarém. Aparentemente, todos se salvaram, inclusive a cobra.

 

Cuiabá-Santarém, quilômetro 100, perto do nada, ali um pouquinho antes do lugar nenhum.

 

Embarcamos então em uma picape branca de uma família que viajava a Rurópolis, nosso destino intermediário até Altamira. No banco traseiro iam mãe e filho pequeno, e agora também Juliana. Na caçamba, carga-viva, sacolejavam Diana e João pelo caminho esburacado, dalí pra frente a estrada era de terra e a chuvinha chegou pra refrescar as idéias. Nesse trecho a rodovia é um longo corte sinuoso vermelho-argila que contrasta com a imensidão verde. Não se vêem mais plantações de soja e a picape vez ou outra carangueja no piso liso e encharcado, mas nosso piloto parece experiente e seu veículo apropriado pra esse tipo de enrosco. Logo paramos atrás de uma fila de caminhões, ônibus e alguns carros. À frente estão alguns tratores pintados com camuflagem militar, trata-se do efetivo do 8º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército (por cuja sede passamos há alguns km atrás), responsável pela construção/manutenção da BR 163 no trecho Santarém-Rurópolis, e que executa atualmente a construção de cinco pontes por sobre alguns igarapés, chamada de “Operação Moju”.

Estávamos em uma subida não muito acentuada, mas que, por ser longa, tornava difícil a subida de veículos muitos pesados, como ônibus e caminhões. Uma árvore caída bloqueava metade da pista bem à nossa frente e um trator de terraplenagem tentava limpar o local para que quem tivesse meios tentasse a travessia. Nosso destemido motorista decide enfrentar a pista escorregadia no momento exato em que a chuva aperta. A salvação da carga-viva foi um pedaço de lona preta que surgiu para preservar nossa parcial dignidade. Em plena Cuiabá-Santarém, montou-se uma #Acampada na caçamba de uma picape branca. Bem que o dia parecia mesmo promissor.

Com muita destreza do condutor, avançamos morro acima até quase o topo, quando o piso excessivamente encharcado e liso mostrou-se um desafio final à nossa perseverança. Subimos e descemos por várias vezes um mesmo trecho de 10 metros, com as rodas da caminhonete girando em falso e o motor em alta rotação exibindo toda a sua potência. O solo alí era duro e compacto, razão pela qual os pneus acabavam não atolando propriamente, mas rodando no mesmo lugar como se fosse uma lajota lisa e ensaboada. Veio então em nosso socorro um trator do exército que se dispôs a nos “guinchar” naquela pequena parte final. Vencemos o momento de dificuldades e, finalmente, algum tempo depois, chegamos a Rurópolis. Já era por volta das 18h e o dia dava seus primeiros sinais de ceder o lugar.

 

Vidinha mais ou menos.

 

Rurópolis, um espólio da ditadura

Rurópolis é um município cuja história está ligada ao Programa de Integração Nacional (PIN) levado a cabo pelo governo militar a partir de 1971, e que previa a “colonização dirigida da Amazônia” às margens do mega-projeto rodoviário que rasgou as entranhas da floresta. A proposta foi estruturar a colonização no eixo ordenador da Transamazônica a partir de três tipos de núcleos populacionais: as agrovilas, as agrópolis e, finalmente, as rurópolis. Cada uma delas se caracterizaria pela presença de uma determinado número médio de habitantes e de serviços públicos oferecidos no local. As agrovilas contariam com uma escola de 1. grau, uma igreja ecumênica e um posto médico, tendo um conjunto de 48 a 64 casas de colonos (com seus lotes de terra). As agrópoles seriam a reunião de algumas agrovilas e contariam com um posto de serviços bancários, correios, posto telefônico e escola de 2. grau (1). As rurópolis, por sua vez, seriam “centros urbanos com função agroindustrial, cultural e administrativa, com uma população de aproximadamente de 1.500 a 4.000 habitantes; disponibilizando comércio diversificado como cooperativas, pequenas indústrias, oficinas mecânicas, restaurantes, hospital-enfermaria, bancos, correios, telefones e escolas de 1º e 2º graus, etc”, além de cinemas, aeroportos, hotéis e bibliotecas. (2). Na prática, só foi criada uma agrópolis (o atual município de Brasil Novo) e esta rurópolis (que originalmente se chamava Presidente Médici e foi inaugurada pelo próprio general no dia 12 de fevereiro de 1974).

Descemos num posto de gasolina próximo à saída da cidade e às margens da famigerada rodovia Transamazônica. Ainda nutríamos a inocente esperança de chegar a Altamira naquele mesmo dia, mas paramos momentaneamente num estabelecimento próximo para nos refrescarmos e descansarmos um pouco. Lugar curioso, no letreiro da faixada havia a inscrição “Peixaria Nordeste”, na parede lateral, “Pensão”, e dentro funcionava principalmente era um restaurante mesmo. Enquanto fumávamos um tabaquiho de Juruti, decidimos que podería ser uma boa idéia nos dividirmos e pelo menos um de nós seguir direto para Altamira de ônibus para garantir a reunião com Dom Erwin no dia seguinte. A essa altura já era noite e não queríamos correr o risco de não conhecer o prelado que é nome forte na luta contra a barragem e a destruição do rio Xingu. Partimos caminhando pra Rodoviária já contando com a promessa da dona da pensão-peixaria-restaurante de nos abrigar em um de seus quartos (sem cobrar nada) caso não encontrássemos nenhuma outra acomodação na cidade.

O único ônibus para Altamira naquele dia era o da empresa Transbrasiliana, que também vinha de Santarém com saída prevista de Rurópolis para as 19h. Era aquele que tínhamos encontrado no atoleiro da BR 163 e, a julgar pelas informações que chegaram, ainda estava por lá parado, sem previsão de vencer a ladeira escorregadia. Deixamos nossos telefones com uma senhora que trabalhava no guichê da companhia e fomos até a “casa dos padres”, apelar pro divino.

A casa paroquial da cidade fica na esquina de duas ruas pacatas de terra. Lá fomos recebidos pelo irmão Luís, missionário estrangeiro que trabalha na região há algum tempo.  Ele se preparava para ir a uma reunião da igreja e nos atendeu com certa pressa e pouca paciência. Não achou nem um pouco boa a idéia de estarmos viajando de carona (principalmente as duas mulheres), tampouco aparecermos sem avisar nos lugares. Exercitando toda a candura de nosso cristianismo não-praticante, ouvimos alguns despautérios que fariam Berta Lutz pular no pescoço de alguém, mas aceitamos a oferta de comida quente e ducha fria nas dependências externas da casa.

 

 

Banho tomado e telefonemas feitos a Dom Erwin e Marcinho, deixamos pra trás o baixo-astral e um bilhete ao irmão agradecendo pela acolhida. Na rodoviário não havia sinal do ônibus nem qualquer previsão por mais otimismo que fosse, resolvemos então aceitar a oferta da dona da pensão e fomos abrigados no quarto de número nove. O dia tinha sido longo e logo todos estávamos dormindo. Ao raiar do sol deveríamos já estar na estrada, nos restavam ainda quase 400 km até Atamira.

 

Altamira (uma palhinha)

Altamira, 14 de janeiro de 2012, noitinha de sábado

Sorveteria Creme Mel, em frente à movimentada orla do rio Xingu (seu sorvete de bacuri é excelente)

Finalmente chegamos, anteontem, à cidade de Altamira. Os dias 11 e 12 foram uma jornada maluca de caronas pela Cuiabá-Santarém e pela Transamazônica. Eram já 18h da quinta-feira, dia 12, quando a Hilux preta do último trecho nos deixou numa grande avenida aqui da cidade. Algo atarantados, nos demos conta de que aquela depressão iluminada ali pertinho era, hm, será mesmo?, o rio que a gente veio buscar? Jogamos as mochilas num cantinho qualquer, subimos na varanda de um restaurante e vimos, ainda meio bobos, as águas verdes do Xingu.

Ainda vivo.

Foi um alívio sutil vindo depois de tanta terra, poeira e calor escaldante na viagem até aqui. Mas, ainda que cansativa, a sequência das caronas, das pessoas e das paisagens que encontramos foi uma aula magna sobre a Amazônia.

A cada lição observada, cresce o sentimento de que é preciso chegar sem pressa e com humildade para entender e, ainda mais, para poder contribuir com este pedaço do mundo.

Do Curuai a Santarém

Alter do Chão (Santarém), madrugada de 10 para 11 de janeiro de 2012
Casa da Sirlaine e do Márcio

Foram dois dias, apenas uma noite, que passamos na Conceição.

Sem luz nem água encanada, a grande casa de madeira da sede da fazenda dorme suspensa sobre um altíssimo trapiche construído há 20 anos.

Nesta época do ano, quando as chuvas ainda acabaram de começar, as águas do Lago Grande do Curuai terminam uns 200 metros à frente da casa; durante o auge da cheia elas tomarão toda a faixa de terra até depois da construção, e o assoalho deve cantar com o seu marulho sob as tábuas enquanto o pequeno Joãozinho Diniz pula da varanda direto no lago pra nadar um pouquinho.

Se não é verdade nem nas regiões do sul brasileiro aquela europeia lição escolar sobre as quatro estações do ano, aqui no Norte ela é uma grande besteira. Existem duas estações que se alternam: o verão ou a seca, que se entendemos direito dura entre junho e outubro; e o inverno ou a cheia, que vai de novembro a maio. Portanto as chuvas começaram há pouco mais de um mês, e ainda não foram suficientes para fazer subir o nível do lago e dos rios.

As águas da Amazônia têm sido um tema constante nesta nossa viagem. Talvez não pudesse ser diferente, já que queremos nos alinhar com um movimento de defesa da bacia do rio Xingu. Mas é muito forte a maneira como o primeiro vislumbre do rio Negro em Manaus, o banho noturno no seu leito até o amanhecer, a viagem no navio de ferro até Juruti passando pelo encontro com o Solimões e entrando no grandioso Amazonas, a placidez dos pequenos lagos e igarapés, a majestade do Lago Grande do Curuai, as voadeiras, canoas, bajaras e rabetas que nos transportaram entre a vila e a fazenda, o barco a motor cruzando o lago prateado em noite de lua cheia até Santarém, a chegada à foz do rio Tapajós e a beleza das suas águas azuis verdejantes aqui no balneário de Alter-do-Chão foram todas experiências muito marcantes — principalmente pra Ju e Diana, que nunca tinham feito esse tipo de viagem fluvial. As noites dormidas nas redes com brisa; a sensação do banzeiro que sobra nos dias seguintes à chegada; o gosto doce e a temperatura morna destas águas acolhedoras; nadar nus; notar que cada um dos grandes rios tem uma cor diferente, uma força distinta, algo como um caráter próprio.

E ainda não vimos o rio Xingu.

Acabamos de descobrir que está em projeto, talvez bastante adiantado, a construção de cinco hidrelétricas ao longo do rio Tapajós ou de afluentes seus. Outras duas, as usinas de Jirau e Santo Antônio, já começam a barrar o rio Madeira em Rondônia. Coloque-se o nosso Xingu na conta e três dos mais grandiosos tributários da bacia amazônica estão com seu equilíbrio em perigo sério. O rio Tocantins já está represado desde 1984, com a construção de hidrelétricas das quais a principal é a de Tucuruí, bem próxima de Altamira.

***

Durante nossa estadia na fazenda de seu João e dona Alda Diniz, nos dedicamos a ler um capítulo crucial do livro Tenotã-Mõ, do engenheiro e professor da Unicamp Oswaldo Sevá (http://www.fem.unicamp.br/~seva/Tenota-Mo_caps1a3_pag92.pdf). A publicação, de 2008, detalha o projeto de seis hidrelétricas que assombra o rio Xingu desde o regime militar. Nos ensinou bastante sobre cada trecho do curso do rio, sobre os impactos que já se conseguem prever e sobre os detalhes do plano das barragens, que só fazem sentido no seu conjunto (por isso o temor de que Belo Monte seja apenas a primeira batalha que a indústria barrageira quer ganhar, para garantir a construção futura das próximas cinco usinas).

Mas a maior parte do tempo que passamos na fazenda Conceição foi levada em conversa, comida, rede, caminhada e contemplação. À noite, histórias ao redor da mesa rústica de madeira, sobre grandes sucurijus e surucucus que vivem por estas terras e, vez ou outra, cruzam os caminhos dos ribeirinhos.

Esse delicioso ritmo foi até a tarde do domingo, quando ganhamos mais uma hora e meia de barquinho rabeta sobre o lago para voltar à vila e embarcar no Cidade do Curuai, que saía às 19h para Santarém. Foi nossa vez de tomar parte no espetáculo colorido e esvoaçante da sobrelotação de redes nos dois andares do barco de madeira, em que se dorme como dá jeito, se come muito bem e se ouvem em volume alto as músicas românticas do sertanejo, do brega ou do forró. Muitos homens jovens viajavam, talvez porque é época para os pescadores de ir à sede do município assinar o seguro do defeso (o tempo em que os peixes se reproduzem e a atividade pesqueira tem de parar). Apesar da proibição da pesca nestes meses, o Antônio Gilmar, policial militar quase aposentado que nos contou e ensinou muitas coisas no início da viagem, diz que viu embarcar num outro barco em Curuai uns duzentos quilos de pirarucu que serão vendidos em Santarém.

Depois de horas cruzando o lago que, impressionantemente, se estende em amplidões bem maiores que as próprias margens do Amazonas, as luzes de Santarém despontaram à nossa frente. Aportamos na cidade pouco antes das 3h da madrugada, mas a embarcação não tem pressa e a maior parte dos passageiros continua dormindo até o amanhecer, quando desarma sua rede, toma sua mala e finalmente vai embora. Foi, naturalmente, o que fizemos também, até telefonarmos perto das 8h para a Sirlaine, amiga da Diana e nossa abrigadora aqui na cidade.

Ela e o marido nos recolheram no porto, depois de rodarmos um pouquinho pelo mercado municipal e pelo comércio das ruas portuárias de Santarém. Nos levaram diretamente para sua casa no balneário de Alter do Chão, onde passamos dois dias cozinhando, descansando, nos maravilhando com a praia de água doce da Ilha do Amor (conhecida, como se seu nome não fosse suficientemente piegas, como “o Caribe brasileiro”). Muito rio, muito céu, muita areia finíssima e quente, muitas pedras lindas como joias (oh pieguice), uma trilha de subida do Morro da Piroca para assistirmos ao sol se por, muita lua e luar iluminando a noite no Tapajós.

Muito sorvete de açaí, muito bombom de cupuaçu, uma única cervejinha Cerpa que estava sendo procurada desde o início desta viagem.

A curiosidade sobre a faixa contra as barragens no Tapajós nos levou a conversar com o Cebola, que nos apresentou ao Cauã, que trouxe junto o Lucas Jatobá; os três integram, de perto ou longe, um grupo de pessoas que começam a obter agora informações sobre os projetos de hidrelétricas neste oeste do Pará. Os dados ainda são escassos e ninguém sabe ao certo o calendário dessas obras. Houve em meados de 2011 um seminário em Itaituba (cidade de garimpos que também fica à beira do Tapajós, uns 400 km ao sul de Santarém) para que os povos e culturas do rio se reunissem e se informassem acerca dos planos; a sua articulação ainda está incipiente. Voltamos para casa percebendo enfim que, vindo aqui ao Pará preocupados com as violações perpetradas pelo projeto de Belo Monte, acabamos descobrindo que a usina de Altamira é apenas um dos grandes empreendimentos amazônicos que há décadas geram lucro ao governo, às grandes construtoras e às multinacionais mineradoras (para citar apenas os atores que já conseguimos identificar) e trazem devastação à floresta e aos seus povos.

Há diversos outros na história do país, e ainda muitos aguardam sua vez de sair do papel.

***

Amanhã, o Márcio (marido da Sirlaine) nos busca aqui em Alter às 8h e nos deixa na saída da BR-163, conhecida como Cuiabá-Santarém, para iniciarmos um dia inteiro de caronas. Desceremos a rodovia até o município de Rurópolis, onde ela faz entroncamento com a Transamazônica. Nesta outra estrada, tomaremos a direção leste para Altamira. Não temos informações seguras sobre o estado das duas rodovias e a duração da viagem; parece que, num ônibus de linha regular (com muitas paradas), ela está levando algo como sete horas. Estamos, portanto, preparados para esperar bastante.

Ao chegar encontraremos o Marcinho, que está neste momento a bordo de um ônibus vindo de Belém e programado para desembarcar em Altamira às 13h. Ele nos mandou agora uma mensagem de celular que diz: “Acabei de entrar no ônibus. Confortável, refrigerado e lotado. Previsão é de 20h de viagem, mas me disseram que é bem comum o pneu furar no trajeto e atrasar. Muita gente de mudança. O moço do meu lado e seu amigo tão indo trabalhar por lá”.