Em Juruti

Juruti, 4 de janeiro de 2012
Alojamento paroquial da Igreja de N.S. da Saúde, cujo sino toca agora as badaladas da meia-noite. 
Ao som de grilos, sapos e Raízes Caboclas — o mais famoso grupo de Música Popular Amazônica (http://www.youtube.com/watch?v=lRanVBbre3c)

Pela manhã de ontem, nas últimas horas da viagem de barco, um senhor de Parintins nos perguntou “Mas o que vocês vão fazer em Juruti? Não tem nada lá!”.

De todas as cidades desta linha fluvial (Manaus e Parintins ficam antes, e depois estão Óbidos, Oriximiná e Santarém), Juruti era até agora a menos importante e com menos atrativos turísticos. Mas em 2006 a multinacional Alcoa, gigante da produção de alumínio, começou a instalar aqui o que hoje todos chamam de “o Projeto de Mineração”. Após fazer, desde o início da década, os estudos de prospecção que revelariam uma das jazidas de bauxita mais ricas do mundo (a exploração deve durar 70 anos e cada quatro toneladas do minério rendem uma tonelada de alumínio, o que é uma proporção inusualmente alta), a corporação passou dois anos instalando estruturas e iniciando os diálogos com a população, para apenas em 2009 iniciar as operações de extração, beneficiamento e venda de bauxita na Mina de Juruti.

Descemos às 13h no pequeno porto da cidade. Aqui nasceu o pai do João.

Nossa primeira inquietação ao andarmos pelas ruas de Juruti era o fato de haver como que um véu de novidade sobre ela. Os comércios são impecáveis, assim como as pessoas dentro deles, comprando ou vendendo, exceto por alguns velhinhos. Há uma quantidade grande de drogarias, casas de construção, lan houses e lojas de celulares, sobretudo estas. Muitos jovens andavam pela rua, conversavam na praça, ensaiavam num galpão para integrar com perfeição a apresentação do Garantido no festival do Boi de Parintins em junho. Alguns no estilo do skate, alguns com jeito de emo, nenhum com as nossas roupas de bicho grilo e rostos vermelhos sofrendo o esquecimento do protetor solar. Duas crianças de bicicleta perguntaram ao João “Você é hippie, né?”.

Essa primeira tarde foi ocupada com a busca de lugar para dormirmos (foi o Francinei, funcionário da sacristia, quem conversou com o padre auxiliar da paróquia e nos colocou neste alojamento, depois de batermos à porta de outra das muitas igrejas evangélicas da cidade), e com duas horas de lan house para pesquisarmos alguns dados, enviarmos nosso primeiro relato e recebermos notícias da Ocupa, da viagem de Duda e Carol a Porto Alegre, das famílias, das pessoas queridas e tudo o mais. Eram já 18h quando armamos nossas redes e tomamos, aliviados, o segundo banho do dia. No Pará é assim: menos de três duchas diárias é para os fortes (http://www.facebook.com/noamazonas).

Uma volta pela cidade à noite, janta caseira à base de carne-de-sol (que segundo a Ju não é a mesma coisa que carne-seca, lição aprendida), cervejinha no Bar do Chinês, conversinha delícia na varanda do alojamento até altas horas e depois noite de sono embalado na rede com chuva o tempo todo até de manhã. Para hoje tínhamos conseguido marcar uma conversa (no balcão da farmácia — “Oi, eu queria falar com alguém da Alcoa, como eu faço?” — “Hm, eu tenho um amigo que conhece uma funcionária da Alcoa, peraí” — telefonema — outro telefonema — encontro marcado, no Pará é assim…) com Anne Alamar Dias, analista de relações comunitárias da Alcoa, explicando que somos estudantes, estamos em viagem de férias e gostaríamos de conhecer o projeto de mineração. Às 14h saímos do alojamento em direção ao km 2 da rodovia estadual PA-257, onde fica a sede da Mina de Juruti.

Mas o caminho foi longo e só encontraríamos de fato a solícita Anne por volta das 18h. As horas passaram numa longa espera em outra portaria da Alcoa, talvez por um desencontro entre as nossas informações e as dela, mas foram também cheias de encontros interessantes. O primeiro deles aconteceu ainda dentro da cidade, quando passamos em frente a um pátio de propriedade da Secretaria de Meio Ambiente onde um caminhão carregava na carroceria dois imensos segmentos de tronco bruto de pau-d’arco, ao lado de outro veículo com a carroceria cheia de toras já beneficiadas de cedro. Os dois lotes de madeira nobre, extraída ilegalmente, haviam sido apreendidos pelo Ibama e aguardavam destinação por ali. O caminhão com cedro trazia, no para-brisa, um adesivo que dizia “Movido a Biodiesel: ajudando a construir um mundo sustentável”, seguido do símbolo da Volkswagen; peça de humor, definitivamente. Quem nos deu as explicações foi um gari que aguardava por ali a chegada de um colega.

Logo no início da rodovia uma construção grande e muito moderna atraiu a nossa atenção. Tinha uma placa na frente, ainda vazia de letreiro. Tudo indicava que aguardava ser inaugurada. Fomos perguntar o que era ao vigia que ocupava uma grande guarita na sua entrada. É um hospital, já totalmente equipado (conforme nos explicaram primeiro o moço, e depois com mais detalhes a própria Anne), que deve entrar em funcionamento dentro de poucos meses. Será administrado por uma fundação contratada pela Alcoa, e atenderá os funcionários da mineração — mas também firmou convênio com o SUS para realizar o atendimento dos habitantes de Juruti.

O moço, cujo nome agora esquecemos, veio de Santarém com o irmão para ocuparem dois dos milhares de postos de trabalho abertos com a vinda da Alcoa para cá. É vigilante na Atlântica, empresa terceirizada que realiza a segurança das instalações da multinacional. O irmão conseguiu o posto de inspetor. Eles trabalham durante quinze dias e depois têm mais quinze de folga. O vigia pensa em casar com a moça que hoje namora e mudar-se de vez para Juruti, em vez de passar, como faz hoje, os quinze dias livres em Santarém “gastando tudo o que eu ganhei nos outros quinze dias”. Especula que em São Paulo deve fazer frio, e tem um primo que deixou a metrópole paulista para viver em Santarém — uma cidade mais tranquila mas que tem tudo, “a capital do nosso estado do Tapajós”.

Da altura do hospital até a portaria da Alcoa no km 2, onde achávamos que deveríamos encontrar a Anne, pedimos carona na estrada para fugir do sol forte. Quem nos transportou foi um rapaz que viajava num carro de passeio branco. A Ju lhe perguntou, no chute: “Você trabalha para a Alcoa?”. Ele respondeu que não: que tinha uma locadora de carros. “Que presta serviço para a Alcoa?”, chutamos de novo. Desta vez acertamos.

Na portaria 2 funcionam, segundo o que conseguimos ver, quatro equipamentos da multinacional: uma Estação de Tratamentos de Efluentes que lida com todo o resíduo dos banheiros químicos utilizados nas instalações, uma Mini-Empresa que realiza qualificação profissional inicial para os filhos dos funcionários alcoanos, uma unidade do Senai onde acontecem os cursos técnicos destinados aos habitantes de Juruti para ocuparem postos na mineração, e um centro de treinamento em temas de SSMA (Saúde, Segurança e Meio Ambiente) voltado aos empregados diretos e terceirizados da mina.

Quando já havíamos visto e fotografado todos os detalhes possíveis dessas instalações e começávamos a ficar entediados com as músicas de tecnobrega tocadas no celular de uma alegre funcionária de limpeza do centro de treinamento, desistimos da instrução de aguardar a Anne e fomos atrás dela em seu escritório. Conseguimos carona com um dos funcionários da empresa terceirizada de segurança. No trajeto, passamos ao lado de uma comunidade formada por casas muito simples, algumas precárias. Perguntamos se aquele bairro existia há muito tempo. “Não, é uma invasão, deve ter uns quatro anos só, são as pessoas que vieram pra cá por causa da mineradora.” “— São funcionários da Alcoa?”. Ele responde: “Não, ninguém”.

Anne se encontrava em sua sala, ao lado da portaria 1, espaço apertado em que se responsabiliza por todas as frentes de articulação entre a multinacional e a comunidade, além de atender pessoalmente aos “comunitários” que procuram algum esclarecimento ou apresentam alguma demanda à empresa.

Anne é de Belém e está em Juruti há 4 anos, desde o princípio da implantação da mina (depois viríamos a saber que sua história pessoal é marcada pela mineração, pois seus pais já trabalhavam nesse ramo desde sua infância, passando por importantes jazidas, como a de Carajás). Segundo ela, a mina de Juruti é um empreendimento muito diferente dos demais: “Trata-se de um modelo de mineração sustentável, único no mundo atualmente”, por conta da “aproximação com a comunidade”. A Alcoa construiu, além do hospital que visitamos, mais um, para baixas complexidades e que já foi doado à Prefeitura, A mineradora mantém também uma espécie de Conselho Municipal de Sustentabilidade, integrado pelo poder público local, sindicatos e associações locais, câmara de comércio, entre outros. Pelo que consta, é responsabilidade desse conselho avaliar as práticas de sustentabilidade ambiental e social em prática na cidade. Ele se reúne quinzenalmente.

Um dos principais focos da “ação comunitária” da multinacional são atividades de voluntariado promovidas por seus funcionários junto aos “comunitários” (população da cidade, principalmente das vilas e localidades mais próximas à mineração, que formam Juruti Velho). É comum a empresa ser confundida com o poder local ou estadual e ser cobrada por serviços públicos não prestados.

O suprimento de energia para os processos de extração e beneficiamento da bauxita é garantido por minitermoelétricas instaladas na área da própria mineradora, que funcionam à base de óleo diesel fornecido pela Petrobrás. Por conta dessa limitação, não é possível também fazer em Juruti o processo de transformação da bauxita em lingotes de alumínio. O material beneficiado (bauxita em estado bruto, triturada em pequenas rochas do tamanho de um punho fechado) é carregado de navio até São Luís do Maranhão, onde o processo de transformação é feito pela Alumar (empresa formada pela própria Alcoa, Camargo Corrêa e outras companhias). Caso houvesse suprimento garantido de energia a custos baixos, a Alcoa certamente faria todo o processo em Juruti, sem precisar repassar o material ainda em estado bruto a outra empresa. Belo Monte parece encaixar como uma luva nesse panorama.

A conversa foi longa e salpicada por muitos dados e informações, algumas delas relevantes, como a de que o Presidente da Alcoa para a América Latina e Caribe é um homem “muito educado e charmoso”. Ao final, levamos pra casa belos exemplares de bauxita em cubos de resina transparente, com o símbolo da mineradora em uma das faces e o nome da Mina de Juruti em outra.

Saímos de lá felizes pelo encontro ter acontecido e um pouco atônitos. Toda essa lógica de “desenvolvimento” do país e da Amazônia é muito grande, tudo está embricado, se relaciona entre si, atende a anseios de múltiplos lados, e quando uma mineradora resolve por em prática o que de mais “radical” se viu até o momento em ação política e assistência social no local de uma de suas jazidas, as coisas parecem ficar ainda mais complicadas.

Amanhã será um dia importante, o último na cidade, e ainda temos muitas conversas para ter e igarapés para nadar.