De Santarém a Rurópolis

Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre 

Começamos a vinda de Santarém para cá no dia 11 ao meio-dia, levantando uma plaquinha que dizia “Altamira” e outra que dizia “Rurópolis” em frente a um posto, na saída da BR-163. Nessa ponta, a rodovia Cuiabá-Santarém é razoavelmente ampla, razoavelmente asfaltada, razoavelmente sinalizada e merece razoavelmente o nome de BR. Um senhor e um rapaz aguardavam um ônibus perto de onde estávamos, e vieram solícitos dizer que não era costume por aqueles lados os motoristas pararem para dar carona. Outro caminhoneiro veio nos oferecer um marmitex, e disse que não conseguiríamos nenhuma carona ali, coisa que ele sabia depois dos 40 anos em que pegava a estrada. O dia parecia mesmo promissor.

 

Ao pegar caronas, comunicação é tudo.

 

Convicção também.

 

Quem primeiro aceitou nos levar foi o motorista de um ônibus que ia para a localidade de Açaizal, 72 km à frente. Depois de poucas horas de trajeto, e incontáveis paradas em lugares bem improváveis (a última foi o quintal de uma família), ficamos bem na frente da entrada da Flona Tapajós, antes que o ônibus pegasse o acesso para a cidadezinha.

Placas velhas e carcomidas indicando o mapa e as informações principais da Floresta Nacional, um guardinha com a rede armada na guarita, xixi no mato, besouro enorme lindo e azul à beira da estrada, e muito sol na cuca.

 

Flona do Tapajós

 

Ali conhecemos Edson, nossa próxima carona, jovem funcionário da Cargill que nos levou até aproximadamente o km 100 da rodovia. Apesar da formação na área de economia e finanças, sua função na multinacional é a de fiscalizar as fazendas produtoras de soja que tomaram financiamento da companhia para comprar as sementes e iniciar o plantio. Segundo ele, sua atividade consiste em garantir que os agricultores estão plantando mesmo e numa área desmatada antes de 2006, ano em que houve anistia geral para a supressão ilegal de floresta. Caso tenham aberto novas áreas, não poderão vender à Cargill a soja plantada nelas, tendo que dar outro destino para essa colheita. Por razões de mercado (compradores europeus), a soja plantada nas fazendas da região é convencional (não-transgênica), sendo exportada diretamente pela unidade portuária da empresa em Santarém, construída a partir de 2000 e inaugurada em 2003. Do lado de fora da janela, a fala de nosso solidário motorista vai ganhando ilustrações em tempo real: áreas enormes de campo aberto (plantações) contrastam com a a mata fechada que, nesse ponto, já se apresenta mais como interstícios do que como visão preponderante. É a soja na Amazônia.

De volta ao asfalto quente, paramos no alto de uma colina leve, visão privilegiada da longa estrada que corta a floresta. Uma moto se aproxima e pára ao nosso lado: “- Vocês tem água?”. Titubeamos sem saber se aquilo era um pedido ou uma oferta generosa. Depois de um longo gole em nossa garrafa, o motociclista nos contou como conseguiu salvar um desconhecido que encontrou poucos momentos antes, à beira de uma estrada rural, picado por uma cobra. Havia acabado de deixar o vitimado num Batalhão do Exército alí próximo, já meio verde-pálido pela ação do veneno. Em poucos instantes vimos passar no sentido contrário a ambulância de cor escura-militar, rumo ao hospital de Santarém. Aparentemente, todos se salvaram, inclusive a cobra.

 

Cuiabá-Santarém, quilômetro 100, perto do nada, ali um pouquinho antes do lugar nenhum.

 

Embarcamos então em uma picape branca de uma família que viajava a Rurópolis, nosso destino intermediário até Altamira. No banco traseiro iam mãe e filho pequeno, e agora também Juliana. Na caçamba, carga-viva, sacolejavam Diana e João pelo caminho esburacado, dalí pra frente a estrada era de terra e a chuvinha chegou pra refrescar as idéias. Nesse trecho a rodovia é um longo corte sinuoso vermelho-argila que contrasta com a imensidão verde. Não se vêem mais plantações de soja e a picape vez ou outra carangueja no piso liso e encharcado, mas nosso piloto parece experiente e seu veículo apropriado pra esse tipo de enrosco. Logo paramos atrás de uma fila de caminhões, ônibus e alguns carros. À frente estão alguns tratores pintados com camuflagem militar, trata-se do efetivo do 8º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército (por cuja sede passamos há alguns km atrás), responsável pela construção/manutenção da BR 163 no trecho Santarém-Rurópolis, e que executa atualmente a construção de cinco pontes por sobre alguns igarapés, chamada de “Operação Moju”.

Estávamos em uma subida não muito acentuada, mas que, por ser longa, tornava difícil a subida de veículos muitos pesados, como ônibus e caminhões. Uma árvore caída bloqueava metade da pista bem à nossa frente e um trator de terraplenagem tentava limpar o local para que quem tivesse meios tentasse a travessia. Nosso destemido motorista decide enfrentar a pista escorregadia no momento exato em que a chuva aperta. A salvação da carga-viva foi um pedaço de lona preta que surgiu para preservar nossa parcial dignidade. Em plena Cuiabá-Santarém, montou-se uma #Acampada na caçamba de uma picape branca. Bem que o dia parecia mesmo promissor.

Com muita destreza do condutor, avançamos morro acima até quase o topo, quando o piso excessivamente encharcado e liso mostrou-se um desafio final à nossa perseverança. Subimos e descemos por várias vezes um mesmo trecho de 10 metros, com as rodas da caminhonete girando em falso e o motor em alta rotação exibindo toda a sua potência. O solo alí era duro e compacto, razão pela qual os pneus acabavam não atolando propriamente, mas rodando no mesmo lugar como se fosse uma lajota lisa e ensaboada. Veio então em nosso socorro um trator do exército que se dispôs a nos “guinchar” naquela pequena parte final. Vencemos o momento de dificuldades e, finalmente, algum tempo depois, chegamos a Rurópolis. Já era por volta das 18h e o dia dava seus primeiros sinais de ceder o lugar.

 

Vidinha mais ou menos.

 

Rurópolis, um espólio da ditadura

Rurópolis é um município cuja história está ligada ao Programa de Integração Nacional (PIN) levado a cabo pelo governo militar a partir de 1971, e que previa a “colonização dirigida da Amazônia” às margens do mega-projeto rodoviário que rasgou as entranhas da floresta. A proposta foi estruturar a colonização no eixo ordenador da Transamazônica a partir de três tipos de núcleos populacionais: as agrovilas, as agrópolis e, finalmente, as rurópolis. Cada uma delas se caracterizaria pela presença de uma determinado número médio de habitantes e de serviços públicos oferecidos no local. As agrovilas contariam com uma escola de 1. grau, uma igreja ecumênica e um posto médico, tendo um conjunto de 48 a 64 casas de colonos (com seus lotes de terra). As agrópoles seriam a reunião de algumas agrovilas e contariam com um posto de serviços bancários, correios, posto telefônico e escola de 2. grau (1). As rurópolis, por sua vez, seriam “centros urbanos com função agroindustrial, cultural e administrativa, com uma população de aproximadamente de 1.500 a 4.000 habitantes; disponibilizando comércio diversificado como cooperativas, pequenas indústrias, oficinas mecânicas, restaurantes, hospital-enfermaria, bancos, correios, telefones e escolas de 1º e 2º graus, etc”, além de cinemas, aeroportos, hotéis e bibliotecas. (2). Na prática, só foi criada uma agrópolis (o atual município de Brasil Novo) e esta rurópolis (que originalmente se chamava Presidente Médici e foi inaugurada pelo próprio general no dia 12 de fevereiro de 1974).

Descemos num posto de gasolina próximo à saída da cidade e às margens da famigerada rodovia Transamazônica. Ainda nutríamos a inocente esperança de chegar a Altamira naquele mesmo dia, mas paramos momentaneamente num estabelecimento próximo para nos refrescarmos e descansarmos um pouco. Lugar curioso, no letreiro da faixada havia a inscrição “Peixaria Nordeste”, na parede lateral, “Pensão”, e dentro funcionava principalmente era um restaurante mesmo. Enquanto fumávamos um tabaquiho de Juruti, decidimos que podería ser uma boa idéia nos dividirmos e pelo menos um de nós seguir direto para Altamira de ônibus para garantir a reunião com Dom Erwin no dia seguinte. A essa altura já era noite e não queríamos correr o risco de não conhecer o prelado que é nome forte na luta contra a barragem e a destruição do rio Xingu. Partimos caminhando pra Rodoviária já contando com a promessa da dona da pensão-peixaria-restaurante de nos abrigar em um de seus quartos (sem cobrar nada) caso não encontrássemos nenhuma outra acomodação na cidade.

O único ônibus para Altamira naquele dia era o da empresa Transbrasiliana, que também vinha de Santarém com saída prevista de Rurópolis para as 19h. Era aquele que tínhamos encontrado no atoleiro da BR 163 e, a julgar pelas informações que chegaram, ainda estava por lá parado, sem previsão de vencer a ladeira escorregadia. Deixamos nossos telefones com uma senhora que trabalhava no guichê da companhia e fomos até a “casa dos padres”, apelar pro divino.

A casa paroquial da cidade fica na esquina de duas ruas pacatas de terra. Lá fomos recebidos pelo irmão Luís, missionário estrangeiro que trabalha na região há algum tempo.  Ele se preparava para ir a uma reunião da igreja e nos atendeu com certa pressa e pouca paciência. Não achou nem um pouco boa a idéia de estarmos viajando de carona (principalmente as duas mulheres), tampouco aparecermos sem avisar nos lugares. Exercitando toda a candura de nosso cristianismo não-praticante, ouvimos alguns despautérios que fariam Berta Lutz pular no pescoço de alguém, mas aceitamos a oferta de comida quente e ducha fria nas dependências externas da casa.

 

 

Banho tomado e telefonemas feitos a Dom Erwin e Marcinho, deixamos pra trás o baixo-astral e um bilhete ao irmão agradecendo pela acolhida. Na rodoviário não havia sinal do ônibus nem qualquer previsão por mais otimismo que fosse, resolvemos então aceitar a oferta da dona da pensão e fomos abrigados no quarto de número nove. O dia tinha sido longo e logo todos estávamos dormindo. Ao raiar do sol deveríamos já estar na estrada, nos restavam ainda quase 400 km até Atamira.