Conhecendo o Xingu Vivo

Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre

O dia seguinte era sexta-feira, 13 de janeiro. Às 8h30 deveria começar a primeira reunião do Movimento Xingu Vivo Para Sempre neste ano de 2012. Saímos em cima da hora e, na força do hábito, levantamos o polegar na avenida Alacid Nunes pra ver se alguém nos transportava até o centro. Um carro popular parou e transformou nossa caminhada de meia hora em cinco minutinhos motorizados.

Durante esses poucos minutos soubemos que nosso motorista era nada menos que o subprefeito de Castelo dos Sonhos, um dos distritos de Altamira. Mentira. Não apenas um entre todos os distritos. Castelo fica a incríveis 1.100 km da sede do município, tem 15 mil habitantes e seu subprefeito leva um dia de viagem pela estrada para vir conversar, com regularidade mensal, com a prefeita Odileia Sampaio (PSDB).

Adiante de Castelo, há um segundo distrito ainda mais longe.

 

Altamira é o segundo maior município do mundo; se fosse um estado brasileiro, seria o 16o maior do país (um pouco menor que o PR, e maior que o AC e o CE).

 

Altamira é o segundo município mais extenso do mundo (só perde para a Groelândia, imaginem). É do tamanho de Portugal e da mesma ordem de grandeza que o estado do Amapá, que também está longe de ser o menor estado brasileiro. Ainda não foi desmembrado porque, há uma década, o governo de FHC decretou uma moratória na criação de novos municípios para conter uma leva festiva de emancipações. Os moradores de Castelo dos Sonhos são alguns dos que aguardam hoje, ao que parece com ansiedade enorme, que o Congresso vote logo a revisão desse decreto. O Congresso, ao que parece sem pressa nenhuma, preocupa-se com outras coisas.

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À porta do salão aqui embaixo, onde ocorreria a reunião, Dom Erwin nos deu bom dia e zombou do atraso brasileiramente institucionalizado. Celebrara havia pouco tempo uma missa de Bodas de Prata que estava marcada para as sete, mas que tomaram o cuidado de avisá-lo que na verdade começaria às sete e meia.

Nos quarenta minutos de espera até que todos e todas chegassem, conhecemos a irmã Inez, que nos explicou quem era a senhorinha cuja foto estampava um enorme banner na parede (Chiara Lubich, fundadora do movimento católico dos Focolares, que Inez considera coisa de quem tem dinheiro mas, mesmo assim, portador de uma mensagem inspiradora segundo a qual o amor é, por vezes, a única força transformadora capaz de atuar no mundo — os focolares usam o mesmo salão para reuniões suas em Altamira).

 

Camiseta: Comando Contra Belo Monstro
Estampa de camiseta na sede do Movimento Xingu Vivo

 

A companheira Inez, de cabelos brancos e pele de avó, nos sorriu muito com a risada marota de quem sabe, e nos contou coisas que iam da organização astuta dos camponeses de ascendência europeia em sua pequena cidade natal gaúcha até sua luta atual na ponta de lança do movimento de resistência à construção da barragem de Belo Monte. Nos perguntou se já tínhamos visitado os canteiros de obras nas margens do Xingu; disse que ela própria ainda não havia tido a coragem. Corria durante a manhã toda a informação de que já haviam começado a ser construídas as tais ensecadeiras, um barramento provisório do rio que permitiria o início da construção a seco do primeiro paredão definitivo. A irmã Inez riu do argumento governamental (que de fato transpira descaramento) segundo o qual não seria mais possível reverter a construção da usina porque as obras já estavam iniciadas. “Se já tiver um buraco feito não tem problema, a gente transforma num açude e cria uns peixinhos.”

Enquanto a ouvíamos, reconhecemos ao longe a mulher de traços e voz fortes que havíamos visto chorar neste vídeo aqui: http://vimeo.com/33750674 (o vídeo registra o lançamento do filme Às Margens do Xingu: Vozes não Consideradas, cujo trailer pode ser visto aqui http://www.xinguvivo.org.br/2011/07/14/a-margem-do-xingu-%E2%80%93-vozes-nao-consideradas/ e cuja íntegra nós temos em mãos e podemos repassar).

Ela era a Antonia Melo, presidente do MXVPS, que concedia entrevista falando com contundência a uma jovem repórter da emissora Santa Terezinha. Estampada nas costas de sua camiseta, uma frase linda fundia numa só poderosa ideia a sua trajetória marcada pela militância feminista e a sua briga de 30 anos, atualmente elevada a uma intensidade implacável, em favor da vitalidade da bacia do rio Xingu. “As Mulheres são como as Águas”, dizia a sentença: “crescem porque se juntam.”

 

Antônia Melo
Na camiseta da Antônia Melo: "As Mulheres são como as Águas: crescem porque se juntam".

 

A Melo é uma liderança fundamental na luta contra Belo Monte e nos inspira ânimo desde aquela reunião até agora, na madrugada que avança (deixou o escritório do movimento há algumas horas, já tarde da noite, nos dando as instruções de como trancar a porta e prometendo trazer um suco de cupuaçu para animar a manhã), apesar da tristeza que a toma muitas vezes por dia agora que o CCBM já começou a sangrar o rio.

Para quem quiser saber mais sobre ela, este é o texto que Dom Erwin escreveu apresentando a história de vida e homenageando a luta da sua comadre Melo: http://www.prelaziadoxingu.com.br/partida/index.php?option=com_content&view=article&id=208:comadre-melo&catid=161:dom-erwin&Itemid=453.

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A reunião tinha duas finalidades: avaliar a atuação do movimento no ano que se encerra e levantar as propostas de ação para 2012. Sheyla Juruna fez uma fala comovida mencionando a luta dos poucos povos indígenas que permanecem resistindo contra o assédio da Norte Energia S.A., e o desrespeito sistemático do governo brasileiro que tem reiteradamente violado os direitos dos índios para construir a hidrelétrica. Dom Erwin realizou uma avaliação que, sem demonstrar um otimismo que seria descabido, também se recusava a ser desesperançada. “Força e coragem”, disse ao final, usando o que parece ser seu bordão pessoal de despedida dos companheiros de luta.

 

Grito de guerra: "Xingu Vivo! PARA SEMPRE!"

 

A Melo nos convidou a participar da rodada de falas contando um pouco do que vimos na mineração da Alcoa em Juruti. Compartilhamos como pudemos as informações ainda borbulhantes sobre o que nos parece a nova falácia que a gigante do alumínio chama de “mineração sustentável”. O projeto da Alcoa coloca, de fato, a luta num patamar diferente. Afinal, o descaramento da Nesa (sigla da Norte Energia S.A., conglomerado empresarial que levou a licitação de construção da usina e que, para essa tarefa, subcontrata outro conglomerado denominado CCBM – Consórcio Construtor de Belo Monte, assim como outras empreiteiras menores), o seu descaramento que se vê aqui por Altamira é o oposto do clima de bonança percebido em Juruti. Quando a empresa capitalista leva às últimas consequências os tais valores que o marketing hoje chama de SSMA (saúde, segurança e meio-ambiente) e se antecipa na proposição e cumprimento de compensações sociais e ambientais, qual sentido sobra para a luta? Ainda está em jogo o equilíbrio do Lago Grande do Curuai, a vida da bacia do rio Xingu, a ligação ancestral dos povos da floresta com suas terras e a tensão entre os direitos dos brasileiros à preservação dos seus recursos naturais, por um lado, e por outro a cobiça de quem encara a Amazônia não como ente rico e vivo, e sim como matéria-prima para a geração de lucro privado.

Ainda cremos que não é nem mesmo o cumprimento das condicionantes (hoje sumariamente desprezadas, como se pode ver neste link do MPF-PA: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2010/noticias/Monitoramento%20das%20Condicionantes%20de%20Belo%20Monte.pdf/at_download/file) ou as compensações de todo tipo que vão substituir o respeito que o governo brasileiro deveria ter com a proteção de suas florestas e dos povos originários de seu território.

Chegada a Altamira

Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, pernas doloridas das picadas de pium, cidade silenciosa e deserta ao redor

Depois que a Hilux do generoso fazendeiro de gado e madeira nobre nos deixou na avenida Alacid Nunes, uma das grandes vias aqui de Altamira, e que contemplamos cansados e aliviados o rio Xingu a partir da varanda daquele restaurante, fomos procurar a casa da Wanessa e do Wanderson, que com cuidado enorme têm nos acolhido na cidade.

Logo encontramos a torre da tevê Liberal, que era nosso ponto de referência. (O grupo Liberal é o maior monopólio paraense de comunicação: dono do principal jornal de Belém, de emissoras de rádio e da retransmissora da Globo no estado. Depois descobrimos que a cidade de Altamira não tem jornal impresso próprio e, como mídia local, conta apenas com telejornais em três canais de tevê; a única voz dissonante é a da emissora Santa Terezinha, de propriedade da Prelazia do Xingu.) Em casa nos juntamos ao Marcinho, chegado no dia anterior. Delicioso e inusitado isso de matarmos as saudades dele em Altamira.

Pensávamos que descansaríamos do trajeto para finalmente começar, no dia seguinte, as conversas e visitas que ansiávamos por fazer. Mas alguém teve a lembrança de que seria bom darmos um alô pessoalmente a Dom Erwin, bispo da Prelazia do Xingu (sua biografia está aqui http://pt.wikipedia.org/wiki/Erwin_Kr%C3%A4utler), com quem tínhamos marcado uma conversa para a tarde daquele dia que, infelizmente, o tempo das caronas tornou impossível.

 

Banner no escritório do Xingu Vivo homenageia a luta do bispo Dom Erwin.

 

Verificamos no mapa o endereço da Prelazia e nos pusemos a caminhar. Nosso bairro aqui na cidade fica a uns 30 minutos de caminhada do centro (que beira a orla do rio). No trajeto Altamira se apresentava a nós, noturna, estranha e mutante. Perguntamos em três ou quatro pontos onde poderíamos encontrar o bispo, até chegarmos à catedral de Altamira, em que Dom Erwin terminava, paramentado sobre o altar, de celebrar a missa do segundo dia da novena de São Sebastião — padroeiro do município. Sentamos nos bancos do fundo da igreja, e nosso alô se transformou num aperto de mão em que desejamos a paz de Cristo ao prelado do Xingu.

Aguardamos o bispo ao final da celebração. Vimo-lo entrar novamente na nave por uma porta lateral ao altar, um homem altivo e sereno em camisa pólo, caminhando em passos firmes e trazendo papeis sob o braço. Nos viu e disse “Ah, eu sabia que eram vocês. Quem é a Diana?” — inquirindo entre as duas mulheres do grupo para saber qual era aquela que lhe havia feito os telefonemas.

Conheceu a Diana e elogiou seu piercing de argola no nariz. (“Oh, que bonitinho!”, e uma risada solar.)

Conheceu a todos nós, contou que no dia seguinte pela manhã o Movimento Xingu Vivo Para Sempre se reuniria, disse que telefonaria à sua presidente para saber se poderíamos comparecer ao encontro, e combinou de nos ligar em seguida confirmando nossa ida e informando o endereço.

Deixou a igreja secundado pelos dois seguranças que o acompanham. Da mesma maneira que os bispos de Santarém, Alenquer e Marabá, o prelado de Altamira está sob ameaça de morte graças à sua militância em favor da justiça social e dos povos da floresta.

O celular do Marcinho tocou quando estávamos já a caminho de casa, depois de comermos mingau na saída da missa (mingau é o nome que aqui se dá ao que chamamos, em São Paulo, de canjica) e conversarmos com Ângela e Eduardo, ela altamirense e ele belenense, um casal muito ativo na comunidade eclesial da Prelazia, que vive há três décadas na cidade mas que se muda ao final de fevereiro para Santarém. O filho deles já estuda lá, o que forneceu o pretexto que faltava para que eles fugissem do que veem como o caos tomando conta de Altamira. As histórias e histórias que nos contaram durante os cinco quarteirões que caminhamos lado a lado foram uma pequena (e já impressionante) amostra dos alucinantes impactos, já gritantemente visíveis, que a população e o espaço urbano de Altamira sofrem com as movimentações do Consórcio Construtor de Belo Monte desde o início de 2011.

O hotel começa a ser construído agora, já sabendo que pode negociar seus leitos com doze meses de antecedência. O mercado da cidade está inflacionado com a presença do CCBM.

Sede do Movimento Xingu Vivo, disse Dom Erwin por telefone ao Márcio: esquina da rua Sete de Setembro com a rua Lindolfo Aranha, em frente ao Hotel Lisboa, que foi comprado pelo Consórcio Construtor de Belo Monte como uma das muitas diferentes estratégias para abrigar a enorme quantidade de trabalhadores seus que precisam se hospedar na cidade.

De Santarém a Rurópolis

Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre 

Começamos a vinda de Santarém para cá no dia 11 ao meio-dia, levantando uma plaquinha que dizia “Altamira” e outra que dizia “Rurópolis” em frente a um posto, na saída da BR-163. Nessa ponta, a rodovia Cuiabá-Santarém é razoavelmente ampla, razoavelmente asfaltada, razoavelmente sinalizada e merece razoavelmente o nome de BR. Um senhor e um rapaz aguardavam um ônibus perto de onde estávamos, e vieram solícitos dizer que não era costume por aqueles lados os motoristas pararem para dar carona. Outro caminhoneiro veio nos oferecer um marmitex, e disse que não conseguiríamos nenhuma carona ali, coisa que ele sabia depois dos 40 anos em que pegava a estrada. O dia parecia mesmo promissor.

 

Ao pegar caronas, comunicação é tudo.

 

Convicção também.

 

Quem primeiro aceitou nos levar foi o motorista de um ônibus que ia para a localidade de Açaizal, 72 km à frente. Depois de poucas horas de trajeto, e incontáveis paradas em lugares bem improváveis (a última foi o quintal de uma família), ficamos bem na frente da entrada da Flona Tapajós, antes que o ônibus pegasse o acesso para a cidadezinha.

Placas velhas e carcomidas indicando o mapa e as informações principais da Floresta Nacional, um guardinha com a rede armada na guarita, xixi no mato, besouro enorme lindo e azul à beira da estrada, e muito sol na cuca.

 

Flona do Tapajós

 

Ali conhecemos Edson, nossa próxima carona, jovem funcionário da Cargill que nos levou até aproximadamente o km 100 da rodovia. Apesar da formação na área de economia e finanças, sua função na multinacional é a de fiscalizar as fazendas produtoras de soja que tomaram financiamento da companhia para comprar as sementes e iniciar o plantio. Segundo ele, sua atividade consiste em garantir que os agricultores estão plantando mesmo e numa área desmatada antes de 2006, ano em que houve anistia geral para a supressão ilegal de floresta. Caso tenham aberto novas áreas, não poderão vender à Cargill a soja plantada nelas, tendo que dar outro destino para essa colheita. Por razões de mercado (compradores europeus), a soja plantada nas fazendas da região é convencional (não-transgênica), sendo exportada diretamente pela unidade portuária da empresa em Santarém, construída a partir de 2000 e inaugurada em 2003. Do lado de fora da janela, a fala de nosso solidário motorista vai ganhando ilustrações em tempo real: áreas enormes de campo aberto (plantações) contrastam com a a mata fechada que, nesse ponto, já se apresenta mais como interstícios do que como visão preponderante. É a soja na Amazônia.

De volta ao asfalto quente, paramos no alto de uma colina leve, visão privilegiada da longa estrada que corta a floresta. Uma moto se aproxima e pára ao nosso lado: “- Vocês tem água?”. Titubeamos sem saber se aquilo era um pedido ou uma oferta generosa. Depois de um longo gole em nossa garrafa, o motociclista nos contou como conseguiu salvar um desconhecido que encontrou poucos momentos antes, à beira de uma estrada rural, picado por uma cobra. Havia acabado de deixar o vitimado num Batalhão do Exército alí próximo, já meio verde-pálido pela ação do veneno. Em poucos instantes vimos passar no sentido contrário a ambulância de cor escura-militar, rumo ao hospital de Santarém. Aparentemente, todos se salvaram, inclusive a cobra.

 

Cuiabá-Santarém, quilômetro 100, perto do nada, ali um pouquinho antes do lugar nenhum.

 

Embarcamos então em uma picape branca de uma família que viajava a Rurópolis, nosso destino intermediário até Altamira. No banco traseiro iam mãe e filho pequeno, e agora também Juliana. Na caçamba, carga-viva, sacolejavam Diana e João pelo caminho esburacado, dalí pra frente a estrada era de terra e a chuvinha chegou pra refrescar as idéias. Nesse trecho a rodovia é um longo corte sinuoso vermelho-argila que contrasta com a imensidão verde. Não se vêem mais plantações de soja e a picape vez ou outra carangueja no piso liso e encharcado, mas nosso piloto parece experiente e seu veículo apropriado pra esse tipo de enrosco. Logo paramos atrás de uma fila de caminhões, ônibus e alguns carros. À frente estão alguns tratores pintados com camuflagem militar, trata-se do efetivo do 8º Batalhão de Engenharia de Construção do Exército (por cuja sede passamos há alguns km atrás), responsável pela construção/manutenção da BR 163 no trecho Santarém-Rurópolis, e que executa atualmente a construção de cinco pontes por sobre alguns igarapés, chamada de “Operação Moju”.

Estávamos em uma subida não muito acentuada, mas que, por ser longa, tornava difícil a subida de veículos muitos pesados, como ônibus e caminhões. Uma árvore caída bloqueava metade da pista bem à nossa frente e um trator de terraplenagem tentava limpar o local para que quem tivesse meios tentasse a travessia. Nosso destemido motorista decide enfrentar a pista escorregadia no momento exato em que a chuva aperta. A salvação da carga-viva foi um pedaço de lona preta que surgiu para preservar nossa parcial dignidade. Em plena Cuiabá-Santarém, montou-se uma #Acampada na caçamba de uma picape branca. Bem que o dia parecia mesmo promissor.

Com muita destreza do condutor, avançamos morro acima até quase o topo, quando o piso excessivamente encharcado e liso mostrou-se um desafio final à nossa perseverança. Subimos e descemos por várias vezes um mesmo trecho de 10 metros, com as rodas da caminhonete girando em falso e o motor em alta rotação exibindo toda a sua potência. O solo alí era duro e compacto, razão pela qual os pneus acabavam não atolando propriamente, mas rodando no mesmo lugar como se fosse uma lajota lisa e ensaboada. Veio então em nosso socorro um trator do exército que se dispôs a nos “guinchar” naquela pequena parte final. Vencemos o momento de dificuldades e, finalmente, algum tempo depois, chegamos a Rurópolis. Já era por volta das 18h e o dia dava seus primeiros sinais de ceder o lugar.

 

Vidinha mais ou menos.

 

Rurópolis, um espólio da ditadura

Rurópolis é um município cuja história está ligada ao Programa de Integração Nacional (PIN) levado a cabo pelo governo militar a partir de 1971, e que previa a “colonização dirigida da Amazônia” às margens do mega-projeto rodoviário que rasgou as entranhas da floresta. A proposta foi estruturar a colonização no eixo ordenador da Transamazônica a partir de três tipos de núcleos populacionais: as agrovilas, as agrópolis e, finalmente, as rurópolis. Cada uma delas se caracterizaria pela presença de uma determinado número médio de habitantes e de serviços públicos oferecidos no local. As agrovilas contariam com uma escola de 1. grau, uma igreja ecumênica e um posto médico, tendo um conjunto de 48 a 64 casas de colonos (com seus lotes de terra). As agrópoles seriam a reunião de algumas agrovilas e contariam com um posto de serviços bancários, correios, posto telefônico e escola de 2. grau (1). As rurópolis, por sua vez, seriam “centros urbanos com função agroindustrial, cultural e administrativa, com uma população de aproximadamente de 1.500 a 4.000 habitantes; disponibilizando comércio diversificado como cooperativas, pequenas indústrias, oficinas mecânicas, restaurantes, hospital-enfermaria, bancos, correios, telefones e escolas de 1º e 2º graus, etc”, além de cinemas, aeroportos, hotéis e bibliotecas. (2). Na prática, só foi criada uma agrópolis (o atual município de Brasil Novo) e esta rurópolis (que originalmente se chamava Presidente Médici e foi inaugurada pelo próprio general no dia 12 de fevereiro de 1974).

Descemos num posto de gasolina próximo à saída da cidade e às margens da famigerada rodovia Transamazônica. Ainda nutríamos a inocente esperança de chegar a Altamira naquele mesmo dia, mas paramos momentaneamente num estabelecimento próximo para nos refrescarmos e descansarmos um pouco. Lugar curioso, no letreiro da faixada havia a inscrição “Peixaria Nordeste”, na parede lateral, “Pensão”, e dentro funcionava principalmente era um restaurante mesmo. Enquanto fumávamos um tabaquiho de Juruti, decidimos que podería ser uma boa idéia nos dividirmos e pelo menos um de nós seguir direto para Altamira de ônibus para garantir a reunião com Dom Erwin no dia seguinte. A essa altura já era noite e não queríamos correr o risco de não conhecer o prelado que é nome forte na luta contra a barragem e a destruição do rio Xingu. Partimos caminhando pra Rodoviária já contando com a promessa da dona da pensão-peixaria-restaurante de nos abrigar em um de seus quartos (sem cobrar nada) caso não encontrássemos nenhuma outra acomodação na cidade.

O único ônibus para Altamira naquele dia era o da empresa Transbrasiliana, que também vinha de Santarém com saída prevista de Rurópolis para as 19h. Era aquele que tínhamos encontrado no atoleiro da BR 163 e, a julgar pelas informações que chegaram, ainda estava por lá parado, sem previsão de vencer a ladeira escorregadia. Deixamos nossos telefones com uma senhora que trabalhava no guichê da companhia e fomos até a “casa dos padres”, apelar pro divino.

A casa paroquial da cidade fica na esquina de duas ruas pacatas de terra. Lá fomos recebidos pelo irmão Luís, missionário estrangeiro que trabalha na região há algum tempo.  Ele se preparava para ir a uma reunião da igreja e nos atendeu com certa pressa e pouca paciência. Não achou nem um pouco boa a idéia de estarmos viajando de carona (principalmente as duas mulheres), tampouco aparecermos sem avisar nos lugares. Exercitando toda a candura de nosso cristianismo não-praticante, ouvimos alguns despautérios que fariam Berta Lutz pular no pescoço de alguém, mas aceitamos a oferta de comida quente e ducha fria nas dependências externas da casa.

 

 

Banho tomado e telefonemas feitos a Dom Erwin e Marcinho, deixamos pra trás o baixo-astral e um bilhete ao irmão agradecendo pela acolhida. Na rodoviário não havia sinal do ônibus nem qualquer previsão por mais otimismo que fosse, resolvemos então aceitar a oferta da dona da pensão e fomos abrigados no quarto de número nove. O dia tinha sido longo e logo todos estávamos dormindo. Ao raiar do sol deveríamos já estar na estrada, nos restavam ainda quase 400 km até Atamira.

 

Já estão barrando o rio

Volta Grande do Xingu, 15 de janeiro de 2012, manhã
Passeio de barco com os guerreiros do Movimento Xingu Vivo, visita aos canteiros de obras da CCBM

É preciso contar o que estamos vendo aqui. O Consórcio Construtor de Belo Monte já começou a abrir feridas vermelhas nas margens do rio Xingu. Elas se chamam ensecadeiras, serão três e servirão para conter o rio durante a construção a seco do primeiro paredão. Conter o rio, quem consegue conter um rio? Um rio amazônico tem forças de um gigante, tem pulmões imensos e corre enquanto dorme no leito descomunal que construiu para si mesmo, ou dorme enquanto corre poderosíssimo e veloz singrando o oceano da floresta; ele infiltra as terras subterrâneas e as várzeas férteis, e rege as chuvas, as cheias e as estações; em seus estômagos infinitos vivem os peixes, os botos e as cobras e neles comem os pássaros e os homens; ele é o que é, sabe o que sabe e está onde está há mil anos e nesse tempo criou os seres e os povos que o habitam, que o conhecem, que o cultivam, que o veneram e que o alimentam de volta; e agora a traição de um governo e a cobiça de uma dezena de mentes decide que pode barrá-lo. É um rio. De que tamanho precisa ser o demônio que se torna capaz de barrar UM RIO?

 

O caminhão despeja uma carrada, um trator amarelo vem empurrá-la para a ponta e a barreira avança. O caminhão se retira e dá lugar ao próximo da fila, com sua próxima carrada.

Diz-se que tentaram uma vez começar as ensecadeiras só com terra, mas a correnteza forte do Xingu levou o barramento. Desta vez, então, com matacões.

 

A partir da margem esquerda do rio, a primeira ensecadeira avança em direção à ilha para fechar o primeiro canal.

 

Águas barrentas, sangrentas. Estão começando a chegar assim nas comunidades rio abaixo, que não sabiam o motivo da sujeira até lhes mostrarmos estas fotos recém tiradas.

 

Funcionários do CCBM nos fotografam. Na outra margem, um deles explicou que é a política da empresa: cada um ganha uma máquina para registrar quem se aproxime "de maneira inapropriada", sem equipamentos e sem autorização. Um funcionário nos disse: "Isto é propriedade privada".

 

Floresta derrubada, na outra margem.

 

A destruição já é visível no rio.

 

O corredor desmatado deve já marcar a linha da construção do primeiro paredão.

Altamira (uma palhinha)

Altamira, 14 de janeiro de 2012, noitinha de sábado

Sorveteria Creme Mel, em frente à movimentada orla do rio Xingu (seu sorvete de bacuri é excelente)

Finalmente chegamos, anteontem, à cidade de Altamira. Os dias 11 e 12 foram uma jornada maluca de caronas pela Cuiabá-Santarém e pela Transamazônica. Eram já 18h da quinta-feira, dia 12, quando a Hilux preta do último trecho nos deixou numa grande avenida aqui da cidade. Algo atarantados, nos demos conta de que aquela depressão iluminada ali pertinho era, hm, será mesmo?, o rio que a gente veio buscar? Jogamos as mochilas num cantinho qualquer, subimos na varanda de um restaurante e vimos, ainda meio bobos, as águas verdes do Xingu.

Ainda vivo.

Foi um alívio sutil vindo depois de tanta terra, poeira e calor escaldante na viagem até aqui. Mas, ainda que cansativa, a sequência das caronas, das pessoas e das paisagens que encontramos foi uma aula magna sobre a Amazônia.

A cada lição observada, cresce o sentimento de que é preciso chegar sem pressa e com humildade para entender e, ainda mais, para poder contribuir com este pedaço do mundo.