Altamira, madrugada de 16 para 17 de janeiro de 2012
Sede do Movimento Xingu Vivo Para Sempre
O dia seguinte era sexta-feira, 13 de janeiro. Às 8h30 deveria começar a primeira reunião do Movimento Xingu Vivo Para Sempre neste ano de 2012. Saímos em cima da hora e, na força do hábito, levantamos o polegar na avenida Alacid Nunes pra ver se alguém nos transportava até o centro. Um carro popular parou e transformou nossa caminhada de meia hora em cinco minutinhos motorizados.
Durante esses poucos minutos soubemos que nosso motorista era nada menos que o subprefeito de Castelo dos Sonhos, um dos distritos de Altamira. Mentira. Não apenas um entre todos os distritos. Castelo fica a incríveis 1.100 km da sede do município, tem 15 mil habitantes e seu subprefeito leva um dia de viagem pela estrada para vir conversar, com regularidade mensal, com a prefeita Odileia Sampaio (PSDB).
Adiante de Castelo, há um segundo distrito ainda mais longe.
Altamira é o segundo município mais extenso do mundo (só perde para a Groelândia, imaginem). É do tamanho de Portugal e da mesma ordem de grandeza que o estado do Amapá, que também está longe de ser o menor estado brasileiro. Ainda não foi desmembrado porque, há uma década, o governo de FHC decretou uma moratória na criação de novos municípios para conter uma leva festiva de emancipações. Os moradores de Castelo dos Sonhos são alguns dos que aguardam hoje, ao que parece com ansiedade enorme, que o Congresso vote logo a revisão desse decreto. O Congresso, ao que parece sem pressa nenhuma, preocupa-se com outras coisas.
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À porta do salão aqui embaixo, onde ocorreria a reunião, Dom Erwin nos deu bom dia e zombou do atraso brasileiramente institucionalizado. Celebrara havia pouco tempo uma missa de Bodas de Prata que estava marcada para as sete, mas que tomaram o cuidado de avisá-lo que na verdade começaria às sete e meia.
Nos quarenta minutos de espera até que todos e todas chegassem, conhecemos a irmã Inez, que nos explicou quem era a senhorinha cuja foto estampava um enorme banner na parede (Chiara Lubich, fundadora do movimento católico dos Focolares, que Inez considera coisa de quem tem dinheiro mas, mesmo assim, portador de uma mensagem inspiradora segundo a qual o amor é, por vezes, a única força transformadora capaz de atuar no mundo — os focolares usam o mesmo salão para reuniões suas em Altamira).
A companheira Inez, de cabelos brancos e pele de avó, nos sorriu muito com a risada marota de quem sabe, e nos contou coisas que iam da organização astuta dos camponeses de ascendência europeia em sua pequena cidade natal gaúcha até sua luta atual na ponta de lança do movimento de resistência à construção da barragem de Belo Monte. Nos perguntou se já tínhamos visitado os canteiros de obras nas margens do Xingu; disse que ela própria ainda não havia tido a coragem. Corria durante a manhã toda a informação de que já haviam começado a ser construídas as tais ensecadeiras, um barramento provisório do rio que permitiria o início da construção a seco do primeiro paredão definitivo. A irmã Inez riu do argumento governamental (que de fato transpira descaramento) segundo o qual não seria mais possível reverter a construção da usina porque as obras já estavam iniciadas. “Se já tiver um buraco feito não tem problema, a gente transforma num açude e cria uns peixinhos.”
Enquanto a ouvíamos, reconhecemos ao longe a mulher de traços e voz fortes que havíamos visto chorar neste vídeo aqui: http://vimeo.com/33750674 (o vídeo registra o lançamento do filme Às Margens do Xingu: Vozes não Consideradas, cujo trailer pode ser visto aqui http://www.xinguvivo.org.br/2011/07/14/a-margem-do-xingu-%E2%80%93-vozes-nao-consideradas/ e cuja íntegra nós temos em mãos e podemos repassar).
Ela era a Antonia Melo, presidente do MXVPS, que concedia entrevista falando com contundência a uma jovem repórter da emissora Santa Terezinha. Estampada nas costas de sua camiseta, uma frase linda fundia numa só poderosa ideia a sua trajetória marcada pela militância feminista e a sua briga de 30 anos, atualmente elevada a uma intensidade implacável, em favor da vitalidade da bacia do rio Xingu. “As Mulheres são como as Águas”, dizia a sentença: “crescem porque se juntam.”
A Melo é uma liderança fundamental na luta contra Belo Monte e nos inspira ânimo desde aquela reunião até agora, na madrugada que avança (deixou o escritório do movimento há algumas horas, já tarde da noite, nos dando as instruções de como trancar a porta e prometendo trazer um suco de cupuaçu para animar a manhã), apesar da tristeza que a toma muitas vezes por dia agora que o CCBM já começou a sangrar o rio.
Para quem quiser saber mais sobre ela, este é o texto que Dom Erwin escreveu apresentando a história de vida e homenageando a luta da sua comadre Melo: http://www.prelaziadoxingu.com.br/partida/index.php?option=com_content&view=article&id=208:comadre-melo&catid=161:dom-erwin&Itemid=453.
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A reunião tinha duas finalidades: avaliar a atuação do movimento no ano que se encerra e levantar as propostas de ação para 2012. Sheyla Juruna fez uma fala comovida mencionando a luta dos poucos povos indígenas que permanecem resistindo contra o assédio da Norte Energia S.A., e o desrespeito sistemático do governo brasileiro que tem reiteradamente violado os direitos dos índios para construir a hidrelétrica. Dom Erwin realizou uma avaliação que, sem demonstrar um otimismo que seria descabido, também se recusava a ser desesperançada. “Força e coragem”, disse ao final, usando o que parece ser seu bordão pessoal de despedida dos companheiros de luta.
A Melo nos convidou a participar da rodada de falas contando um pouco do que vimos na mineração da Alcoa em Juruti. Compartilhamos como pudemos as informações ainda borbulhantes sobre o que nos parece a nova falácia que a gigante do alumínio chama de “mineração sustentável”. O projeto da Alcoa coloca, de fato, a luta num patamar diferente. Afinal, o descaramento da Nesa (sigla da Norte Energia S.A., conglomerado empresarial que levou a licitação de construção da usina e que, para essa tarefa, subcontrata outro conglomerado denominado CCBM – Consórcio Construtor de Belo Monte, assim como outras empreiteiras menores), o seu descaramento que se vê aqui por Altamira é o oposto do clima de bonança percebido em Juruti. Quando a empresa capitalista leva às últimas consequências os tais valores que o marketing hoje chama de SSMA (saúde, segurança e meio-ambiente) e se antecipa na proposição e cumprimento de compensações sociais e ambientais, qual sentido sobra para a luta? Ainda está em jogo o equilíbrio do Lago Grande do Curuai, a vida da bacia do rio Xingu, a ligação ancestral dos povos da floresta com suas terras e a tensão entre os direitos dos brasileiros à preservação dos seus recursos naturais, por um lado, e por outro a cobiça de quem encara a Amazônia não como ente rico e vivo, e sim como matéria-prima para a geração de lucro privado.
Ainda cremos que não é nem mesmo o cumprimento das condicionantes (hoje sumariamente desprezadas, como se pode ver neste link do MPF-PA: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2010/noticias/Monitoramento%20das%20Condicionantes%20de%20Belo%20Monte.pdf/at_download/file) ou as compensações de todo tipo que vão substituir o respeito que o governo brasileiro deveria ter com a proteção de suas florestas e dos povos originários de seu território.
Pessoal,
lançamos ontem o Conteste.me, uma plataforma de debate de temas de interesse da sociedade brasileira. O primeiro tema é “Usina de Belo Monte: avanço econômico ou retrocesso socioambiental?”, são dois artigos, um contra e outro a favor, escritos por Célio Bermann (USP) e Nivalde de Castro (UFRJ).
Confiram e, se puder, divulguem:
http://conteste.me/debate/usina-de-belo-monte-avanco-economico-ou-retrocesso-socioambiental