Alter do Chão (Santarém), 10 de janeiro de 2012, manhã
Casa de praia da Sirlaine e do Márcio, nossos anfitriões que agora estão em Santarém
Igapó, igarapé, maniçoba, muriçoca, carapanã, aruanã, pirarucu, piracuí, açaí, abacaba, tracajá, inajá, tauari, curuá, buruti, muruci, tucupi, tacacá, taperebá, tipiti, cupuaçu, bacuri, tucumã, tambaqui, mapará, acuri, tucunaré, tabatinga, muiraquitã.
Nos últimos dias, os nomes de Belo Monte e das cinco outras usinas que a indústria barrageira quer construir no rio Xingu — Babaquara, Iriri, Ipixuna, Kokraimoro e Jarina — têm povoado nossos pensamentos apenas nos momentos de descanso, quando continuamos a leitura do excelente material de estudo que trouxemos na viagem (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/11/24/bibliografia-comentada-50-leituras-sobre-o-ecocidio-de-belo-monte-1%C2%AA-parte/). Eles se misturam com os muitos outros nomes de lugares, comidas e bichos amazônicos que nos encantam. Algumas palavras evocam memórias pros que têm raízes aqui, outras ecoam raízes nordestinas, outras ainda nos lembram do desconhecimento total que temos, lá de São Paulo, sobre a vida e as coisas do Norte.
Às vezes é bom fazer um nó-de-rabicho com a corda ou então uma boca-de-lobo no punho, pra rede ficar na altura certa. Precisa esperar a eletricidade voltar pra bater um cacho de açaí e tomar ele fresco com farinha de tapioca. Tem que encher todo dia os baldes e o corote grande com água, pra poder usar a pia do banheiro e tomar banho. E tem que soltar a pata, matar a galinha, preparar o cozido, jogar e recolher a malhadeira, limpar o peixe. Tem que colocar farinha d’água no caldo do prato. E depois colocar um pouquinho mais. E lavar louça no jirau tirando com cuia a água bombada do poço pro barril. Remar com a Valdicleia na canoa pra ir duas vezes por dia tirar água da bajara descalafetada, senão afoga o motor. Perceber, sobre as paredes e esteios da casa de madeira, a altura da marca da cheia de 2009, quando a água subiu uns 60 centímetros acima do chão. Conversar de noite no luar do trapicho ouvindo os sapos, os grilos e o tecnobrega ao longe tocando na festa da Boa Vista, ali na outra margem do Lago. Imaginar o terçado da índia Tuíra vendo o terçado de dona Alda matar cobra surucucu e sucuriju grande assim.
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Um igarapé é um pequeno curso d’água corrente que desemboca nos rios maiores; geralmente é ladeado por mata bem fechada e abriga um microclima mais fresco que o das ruas ribeirinhas, ou das grandes margens do Rio-Mar (neste não se costuma tomar banho, por causa das águas barrentas). Nos fundos da cidade de Juruti há um lago amplo, lindo e sereno que, sem ser exatamente um igarapé, matou nossa vontade de banho de rio e pôr-do-sol à beira do Amazonas. Isso aconteceu na tarde do dia 5, depois de uma manhã preguiçosa e chuvarenta que rendeu mais pesquisas, contatos para as próximas cidades e entrevistas com moradores sobre as mudanças vindas com o projeto de mineração. O dia também rendeu um papo com o Secretário de Gabinete do prefeito (que apontou para uma relação felizmente mais tensa do que pensávamos entre a prefeitura, petista, e a Alcoa) e um encontro marcado para dia 12 em Altamira com dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu e um dos militantes de décadas contra a construção da usina. Além de um belo mole de tabaco.
Foi na manhã seguinte, sexta-feira dia 6, que deixamos o alojamento paroquial de Juruti. Nosso próximo destino era a Vila do Curuai, distrito de Santarém que fica bem distante da sede do município — separado desta pela imensa massa d’água que é o Lago Grande do Curuai (http://g.co/maps/8mtca).
A ideia era acordar bem cedo naquele dia para estarmos na estrada o quanto antes e conseguirmos alguma carona. Sim, nesta etapa iríamos por terra, percorrendo uma parte da PA-257, a estrada local conhecida como Translago, que liga Juruti à beira do Tapajós (na comunidade do Patacho), onde é possível tomar uma balsa rápida até o porto de Santarém. Obviamente não conseguimos estar tão cedo quanto queríamos na estrada: já era quase 11h quando levantamos nossos polegares pela primeira vez, mas não demorou muito para os primeiros carros pararem. A maioria, na verdade, estava curiosa com as três figuras extravagantes fazendo sinais no acostamento e levantando folhas de papel com a inscrição curuai em letras grandes. Após algum tempo de espera, um caminhão encostou e o motorista se dispôs a nos levar até o início da Translago, 18 km à frente de onde estávamos e fim do trecho asfaltado para nós. Ele era baiano e veio a Juruti se aventurar nos trabalhos temporários da época de construção das instalações da mineradora. Quando minguaram os empregos dessa época, virou funcionário de um armazém local de material de construção transportando materiais diversos; naquela viagem, ia buscar uma carga de areia para o depósito.
Nos deixou no entroncamento do asfalto com a piçarra, e já no início dessa pequena estrada avistamos a primeira placa: “Rio Tapajós – 128 km”. Nem bem alguns minutos se passaram quando um caminhão tipo pau-de-arara apontou no caminho, trazendo duas famílias que vinham de Juruti e também se dirigiam para o Curuai. No começo relutante, o patriarca aceitou nos levar e subimos todos na caçamba. Eram famílias realmente numerosas, com mais alguns agregados: vinham naquele caminhão e em mais outro um pouco atrás. A maioria dos jovens estudava em Manaus e ia para a vila passar as férias, como nos contou a Olga, professora de matemática na metrópole manauara. A ligação deste oeste do Pará com a capital amazonense é muito maior do que propriamente com Belém. Esse é um dos motivos para a luta pela emancipação do estado do Tapajós, “região esquecida pelos políticos da capital” como ouvimos muitas vezes. Todos com quem conversamos em Santarém, Juruti e Curuai lamentam a derrota desse projeto no plebiscito recente sobre a divisão regional.
Passamos por diversas vilas pequenas com casas de madeira e cobertura de palha, de uma planta bem abundante na região. Por aqui e acolá há placas do governo estadual avisando sobre alguma obra ou melhoria que não se via na prática; outras anunciavam o programa federal de eletrificação rural (“Luz Para Todos”). Em meio a isso, a abundante floresta. Nosso motorista dirigia veloz, atacando todas as curvas com uma mescla de experiência e insensatez, tudo ao som da boa e velha aparelhagem paraense, desta vez em músicas dos Mundurukus — a “tribo” que duela todos os anos contra os Muirapinimas pelo título do Festribal, a versão jurutiense do Festival de Parintins, cidade vizinha mais ilustre. Mais alguns igarapés vencidos pela estrada e chegamos ao nosso destino, o Curuai.
A vila ganhou seu nome por conta da tribo indígena Curuaí que primeiro habitou o local há muitos séculos, mas que hoje só deixou lembranças distantes. Apesar de pequena, Curuai é a mais importante comunidade da beira do Lago Grande que leva seu nome. Esta é uma enorme região alagada, formada por parcelas de água do próprio rio Amazonas, alguns igarapés tributários e grandes faixas de várzea e de “terra firme” alagáveis. Na época da cheia as águas sobem vários metros e reconfiguram a paisagem; durante a seca se formam longas praias de areia branca e surgem algumas ilhas ou penínsulas. A região apresenta uma biodiversidade importante e um rico histórico de povoamento humano. Aqui estão as raízes da família do João.
Descemos próximo à igreja matriz e fomos lá em busca de agasalho. Nossa esperança era encontrar algum tipo de alojamento paroquial, semelhante ao que nos abrigou em Juruti. Passaríamos na vila apenas aquela noite, já que no dia seguinte bem cedo encontraríamos o tio do João no porto, chegando de barco de Santarém para nos levar até a sua fazenda, a Conceição. Nada feito. Tanto a igreja quanto a secretaria estavam fechadas: dona Maria, a sacristã, havia saído para o almoço e só retornaria dali a uma hora.
Ao lado da igreja estava o colégio municipal Thiago Xisto, e lá fomos buscar algumas informações. Raimundo, o jovem diretor, nos atendeu muito simpático mas não pôde oferecer abrigo ali mesmo no colégio. Acabamos deixamos as mochilas em sua sala para dar uma volta pela vila enquanto a igreja não abria.
Na saída da escola conhecemos Catebreu, funcionário da prefeitura em outro colégio e poeta de primeira ordem, figura irreverente e muito conversadora. Fez questão de nos levar para conhecer a biblioteca pública que estava a seus cuidados. Pequena e estreita, ela abrigava um amontoado de livros, vários deles didáticos, algumas aranhas e mariposas, e um exemplar de O que é Socialismo do Tragtenberg parecendo fora do seu lugar. Lá mesmo nos ofereceu acolhida em sua casa, onde mora com seus pais, o que prontamente aceitamos com muita satisfação. Foi então que conhecemos o grande seu Ezequiel e sua esposa dona Laureci.
Seu Ezequiel é uma dessas figuras cablocas que representam com maestria a história do povo ribeirinho do Lago Grande. Com traços fortes, mais negros que indígenas, cabelos já branqueados pelo tempo, fala mansa muito bem articulada, cerimonioso em alguns momentos, experiência de quem viveu muitas cheias e vazantes do rio, desses que conseguem conversar sobre qualquer assunto, sabedoria popular, pulsante, falante, com o fino sotaque marcado de ribeirinho paraense, pausas poéticas para organizar as ideias e movimentos coordenados de mãos e sobrancelhas para enfatizar as passagens mais importantes. Um contador de causos dos mais competentes, sabedor da primazia dos detalhes em toda história e conhecedor das muitas da malandragem do jabuti ou do macaco, capazes de lograr na esperteza a força meio besta da onça pintada.
Conversamos durante algum tempo até o Catebreu ter a ideia de nos levar a um igarapé próximo — o fim da tarde se aproximava e o calor ainda era grande. Fomos os quatro.
O caminho era longo (mesmo porque incluía um almocinho e um açaí com tapioca). Passamos por boa parte da vila, incluindo a pista de pouso local (que, segundo disseram tanto a Olga quanto o Catebreu, só recebe aviões em época de eleições municipais). Fomos apresentados também ao curuá, a palmeira rasteira que dá um coquinho pequeno de mesmo nome e da qual se extrai a palha branca, usada para a cobertura dos telhados das casas, como vimos nas comunidades à beira da Translago.
O igarapé do Cambeta é um lugar precioso. Águas claríssimas, bem frias, uma prainha convidativa e, um pouco mais adentro do curso d’água, uma correnteza moderada. Peixes pequenos nos rodeavam e a sensação da água passando pelo corpo foi restauradora.
Já no caminho de volta, logo após o entardecer, conhecemos a Rádio Lago, uma estação comunitária que transmite somente músicas nacionais e locais para o Curuai e parte do Lago Grande. Zaira Vasconcelos, uma jovem dos seus 19 anos, apresentava o programa “Fim de Noite”, um pouco perdida naquele momento pela ausência do técnico de som. Na antessala, pequenas caixinhas individuais com pedidos de música para cada um dos programas apresentados (o de Zaira era o mais requisitado dentre todos). A locutora fez um agradecimento rápido durante a programação aos “amigos visitantes vindos de longe” e nos ofereceu com carinho um Michel Teló ao vivo. Retornamos à casa de Catebreu e seu Ezequiel, que estava já algo preocupado com a nossa demora. Cadeiras na calçada, tragadas no nosso cigarrinho de mole, visita breve de um compadre que chegava de Santarém, e fomos nos recolher cedo para encontrar, ainda na madrugada, com o João Diniz — não o nosso, mas o seu quase-homônimo tio.
Os barcos de Santarém começam a aportar no cais do Curuai por volta das 4h. Ouvem-se suas buzinas ao longe, e na rua se escutam os carros de boi que, táxis amazônicos, vêm carregar as matulas de quem volta para casa. A iluminação pública, que chegou na vila há poucos anos, falhou no momento em que saíamos. De mochila nas costas sobre a calçada, ainda ouvimos uns causos emendados do seu Ezequiel até decidirmos ir para o cais usando a lanterna mesmo.
O caminho era bem curto. Já estavam aportados o Sousa Pereira, o Ribeiro Filho e o Gavião, pequenos barcos a motor (super)lotados de redes coloridas e por cujas estreitas rampinhas de descida não parava de sair gente e pacote atrás de pacote. Mas faltava justamente o Cidade do Curuai, onde vinham seu João Diniz com dona Alda e o netinho de cinco anos (cujo nome e sobrenome, adivinhem qual era). Conversando com os carregadores, descobrimos que aquela luzinha que se via bem longe parada havia um tempinho era o barco que aguardávamos, encalhado no lago. Mas o desencalhe foi breve, a embarcação chegou e com mais algum tempo de espera entramos todos na voadeira que nos levaria à sede da Conceição, distante uma hora e meia pelas águas Lago Grande.
Foi quando estivemos mais perto de observar esse interior ribeirinho do Pará. (Perdão: do Tapajós.) Era dia 7, sábado. De lá para este dia de hoje em Alter do Chão ainda resta bastante o que contar, mas a tarde já avança e precisamos procurar a entidade daqui que colocou na praça uma faixa com as frases “ESSE RIO É NOSSO – Fora as hidrelétricas do Tapajós”. Quem assina a faixa é um selo que diz “Defesa da Bacia do Rio Tapajós, seus Povos e Culturas” e, como sabemos que há usinas projetadas também para este outro rio, estamos muito curiosos para conhecer o movimento que começa a se articular com o objetivo e se opor à sua construção.