Do Curuai a Santarém

Alter do Chão (Santarém), madrugada de 10 para 11 de janeiro de 2012
Casa da Sirlaine e do Márcio

Foram dois dias, apenas uma noite, que passamos na Conceição.

Sem luz nem água encanada, a grande casa de madeira da sede da fazenda dorme suspensa sobre um altíssimo trapiche construído há 20 anos.

Nesta época do ano, quando as chuvas ainda acabaram de começar, as águas do Lago Grande do Curuai terminam uns 200 metros à frente da casa; durante o auge da cheia elas tomarão toda a faixa de terra até depois da construção, e o assoalho deve cantar com o seu marulho sob as tábuas enquanto o pequeno Joãozinho Diniz pula da varanda direto no lago pra nadar um pouquinho.

Se não é verdade nem nas regiões do sul brasileiro aquela europeia lição escolar sobre as quatro estações do ano, aqui no Norte ela é uma grande besteira. Existem duas estações que se alternam: o verão ou a seca, que se entendemos direito dura entre junho e outubro; e o inverno ou a cheia, que vai de novembro a maio. Portanto as chuvas começaram há pouco mais de um mês, e ainda não foram suficientes para fazer subir o nível do lago e dos rios.

As águas da Amazônia têm sido um tema constante nesta nossa viagem. Talvez não pudesse ser diferente, já que queremos nos alinhar com um movimento de defesa da bacia do rio Xingu. Mas é muito forte a maneira como o primeiro vislumbre do rio Negro em Manaus, o banho noturno no seu leito até o amanhecer, a viagem no navio de ferro até Juruti passando pelo encontro com o Solimões e entrando no grandioso Amazonas, a placidez dos pequenos lagos e igarapés, a majestade do Lago Grande do Curuai, as voadeiras, canoas, bajaras e rabetas que nos transportaram entre a vila e a fazenda, o barco a motor cruzando o lago prateado em noite de lua cheia até Santarém, a chegada à foz do rio Tapajós e a beleza das suas águas azuis verdejantes aqui no balneário de Alter-do-Chão foram todas experiências muito marcantes — principalmente pra Ju e Diana, que nunca tinham feito esse tipo de viagem fluvial. As noites dormidas nas redes com brisa; a sensação do banzeiro que sobra nos dias seguintes à chegada; o gosto doce e a temperatura morna destas águas acolhedoras; nadar nus; notar que cada um dos grandes rios tem uma cor diferente, uma força distinta, algo como um caráter próprio.

E ainda não vimos o rio Xingu.

Acabamos de descobrir que está em projeto, talvez bastante adiantado, a construção de cinco hidrelétricas ao longo do rio Tapajós ou de afluentes seus. Outras duas, as usinas de Jirau e Santo Antônio, já começam a barrar o rio Madeira em Rondônia. Coloque-se o nosso Xingu na conta e três dos mais grandiosos tributários da bacia amazônica estão com seu equilíbrio em perigo sério. O rio Tocantins já está represado desde 1984, com a construção de hidrelétricas das quais a principal é a de Tucuruí, bem próxima de Altamira.

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Durante nossa estadia na fazenda de seu João e dona Alda Diniz, nos dedicamos a ler um capítulo crucial do livro Tenotã-Mõ, do engenheiro e professor da Unicamp Oswaldo Sevá (http://www.fem.unicamp.br/~seva/Tenota-Mo_caps1a3_pag92.pdf). A publicação, de 2008, detalha o projeto de seis hidrelétricas que assombra o rio Xingu desde o regime militar. Nos ensinou bastante sobre cada trecho do curso do rio, sobre os impactos que já se conseguem prever e sobre os detalhes do plano das barragens, que só fazem sentido no seu conjunto (por isso o temor de que Belo Monte seja apenas a primeira batalha que a indústria barrageira quer ganhar, para garantir a construção futura das próximas cinco usinas).

Mas a maior parte do tempo que passamos na fazenda Conceição foi levada em conversa, comida, rede, caminhada e contemplação. À noite, histórias ao redor da mesa rústica de madeira, sobre grandes sucurijus e surucucus que vivem por estas terras e, vez ou outra, cruzam os caminhos dos ribeirinhos.

Esse delicioso ritmo foi até a tarde do domingo, quando ganhamos mais uma hora e meia de barquinho rabeta sobre o lago para voltar à vila e embarcar no Cidade do Curuai, que saía às 19h para Santarém. Foi nossa vez de tomar parte no espetáculo colorido e esvoaçante da sobrelotação de redes nos dois andares do barco de madeira, em que se dorme como dá jeito, se come muito bem e se ouvem em volume alto as músicas românticas do sertanejo, do brega ou do forró. Muitos homens jovens viajavam, talvez porque é época para os pescadores de ir à sede do município assinar o seguro do defeso (o tempo em que os peixes se reproduzem e a atividade pesqueira tem de parar). Apesar da proibição da pesca nestes meses, o Antônio Gilmar, policial militar quase aposentado que nos contou e ensinou muitas coisas no início da viagem, diz que viu embarcar num outro barco em Curuai uns duzentos quilos de pirarucu que serão vendidos em Santarém.

Depois de horas cruzando o lago que, impressionantemente, se estende em amplidões bem maiores que as próprias margens do Amazonas, as luzes de Santarém despontaram à nossa frente. Aportamos na cidade pouco antes das 3h da madrugada, mas a embarcação não tem pressa e a maior parte dos passageiros continua dormindo até o amanhecer, quando desarma sua rede, toma sua mala e finalmente vai embora. Foi, naturalmente, o que fizemos também, até telefonarmos perto das 8h para a Sirlaine, amiga da Diana e nossa abrigadora aqui na cidade.

Ela e o marido nos recolheram no porto, depois de rodarmos um pouquinho pelo mercado municipal e pelo comércio das ruas portuárias de Santarém. Nos levaram diretamente para sua casa no balneário de Alter do Chão, onde passamos dois dias cozinhando, descansando, nos maravilhando com a praia de água doce da Ilha do Amor (conhecida, como se seu nome não fosse suficientemente piegas, como “o Caribe brasileiro”). Muito rio, muito céu, muita areia finíssima e quente, muitas pedras lindas como joias (oh pieguice), uma trilha de subida do Morro da Piroca para assistirmos ao sol se por, muita lua e luar iluminando a noite no Tapajós.

Muito sorvete de açaí, muito bombom de cupuaçu, uma única cervejinha Cerpa que estava sendo procurada desde o início desta viagem.

A curiosidade sobre a faixa contra as barragens no Tapajós nos levou a conversar com o Cebola, que nos apresentou ao Cauã, que trouxe junto o Lucas Jatobá; os três integram, de perto ou longe, um grupo de pessoas que começam a obter agora informações sobre os projetos de hidrelétricas neste oeste do Pará. Os dados ainda são escassos e ninguém sabe ao certo o calendário dessas obras. Houve em meados de 2011 um seminário em Itaituba (cidade de garimpos que também fica à beira do Tapajós, uns 400 km ao sul de Santarém) para que os povos e culturas do rio se reunissem e se informassem acerca dos planos; a sua articulação ainda está incipiente. Voltamos para casa percebendo enfim que, vindo aqui ao Pará preocupados com as violações perpetradas pelo projeto de Belo Monte, acabamos descobrindo que a usina de Altamira é apenas um dos grandes empreendimentos amazônicos que há décadas geram lucro ao governo, às grandes construtoras e às multinacionais mineradoras (para citar apenas os atores que já conseguimos identificar) e trazem devastação à floresta e aos seus povos.

Há diversos outros na história do país, e ainda muitos aguardam sua vez de sair do papel.

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Amanhã, o Márcio (marido da Sirlaine) nos busca aqui em Alter às 8h e nos deixa na saída da BR-163, conhecida como Cuiabá-Santarém, para iniciarmos um dia inteiro de caronas. Desceremos a rodovia até o município de Rurópolis, onde ela faz entroncamento com a Transamazônica. Nesta outra estrada, tomaremos a direção leste para Altamira. Não temos informações seguras sobre o estado das duas rodovias e a duração da viagem; parece que, num ônibus de linha regular (com muitas paradas), ela está levando algo como sete horas. Estamos, portanto, preparados para esperar bastante.

Ao chegar encontraremos o Marcinho, que está neste momento a bordo de um ônibus vindo de Belém e programado para desembarcar em Altamira às 13h. Ele nos mandou agora uma mensagem de celular que diz: “Acabei de entrar no ônibus. Confortável, refrigerado e lotado. Previsão é de 20h de viagem, mas me disseram que é bem comum o pneu furar no trajeto e atrasar. Muita gente de mudança. O moço do meu lado e seu amigo tão indo trabalhar por lá”.

De Manaus a Juruti

Rio Amazonas, 2 de janeiro de 2012
A bordo do navio-motor Luan, saído de Manaus com destino a Juruti. 19h em Manaus

Chegamos aqui no último dia do ano por volta das 13h no horário local (15h em São Paulo) e, logo ao sairmos pela porta do avião, o calor e a umidade nos deram as boas-vindas. Bem-vindos a Manaus, a metrópole amazônica. Com pouco mais de de 2 milhões de habitantes, a cidade está engastada no meio da floresta.

No trajeto do aeroporto até a casa de nosso anfitrião local passamos por boa parte da cidade, incluindo as obras do estádio que abrigará alguns jogos da Copa de 2014, mensagens de boas-festas de uma senadora em alguns outdoors, muito comércio popular e pessoas por todo lado com fortes traços indígenas, gente linda, forte e curiosa sobre nós.“Oi, falam português?”, perguntou um guia turístico local ainda no aeroporto.

No bairro do Coroado, zona leste da cidade, o Arthur (namorado de uma amiga de infância do João, lá de Bauru) já nos esperava há um bom tempo. Cara simpático, robusto, traços igualmente fortes, professor de história recém-aprovado no concurso da rede estadual, nos aguentaria durante muitas conversas pelos dois dias que se seguiram.

Depois de um banho e uma soneca curta, pegamos um ônibus para o centro da cidade e passamos os pontos turísticos desertos: a Praça da Saudade recentemente restaurada, as construções antigas do ciclo da borracha, o Teatro Amazonas e o calçamento português do largo em frente a ele, onde ondas pretas e brancas como as das calçadas de Copacabana (que o Arthur diz que foram cópia dali) aludem ao encontro das águas. Ainda fomos ao porto buscar informações sobre o próximo barco para Juruti e Santarém.

Quando faltavam 40 minutos para a chegada de 2012, estávamos no terminal de ônibus chamado de T1. A intenção era tomar a linha 120 para chegar a tempo de ver a queima de fogos na orla do rio Negro. Mas o tal coletivo nunca chegou e ali mesmo, aos abraços, compartilhamos a virada de ano. Pouco tempo depois resolvemos andar. Caminhamos por mais de três horas até a Ponta Negra, onde o rio faz uma prainha.

Era um dos quatro pontos da cidade em que a prefeitura havia organizado shows para a programação oficial da virada. Quase lá, avançávamos contra a corrente das muitas famílias, casais e grupos de amigos que voltavam da comemoração com sandálias nas mãos, crianças e bebês adormecidos nos colos, rostos cansados e felizes apinhando os pontos de ônibus à espera dos primeiros carros da madrugada — do ano.

Na Ponta Negra, com os músculos e os pés doídos, nos juntamos a muita gente que ainda permaneceu na orla, conversando na areia ou tomando banho. A praia nesse ponto desce suave, sem tombo, e entrando no rio o corpo sentiu aos poucos o calor (mesmo na madrugada) das águas pesadas, escuras, macias do rio Negro. As roupas ficaram no último banco de areia da prainha (daquele ponto em diante, máquinas da prefeitura faziam obras na praia durante a noite toda, talvez para ampliar a área do pequeno balneário) e passamos o restante das horas escuras dentro das águas, até o nascer do sol. Assistimos, mergulhados no rio Negro, ao ano amanhecer.

Manaus está na margem norte do rio Negro. De onde olhávamos, à esquerda era o caminho de quem sobe o rio até chegar a São Gabriel da Cachoeira, último município do Amazonas e fronteira com a Colômbia e a Venezuela. À nossa direita era o leste: víamos a ponte que liga a metrópole à outra margem (cuja construção começou há oito anos, foi encerrada há dois meses e cheira a superfaturamento, e cuja inauguração contou com a presença da presidenta Dilma que, segundo o Arthur, não aguentou o calor e desistiu da travessia); víamos também os primeiros clarões do sol trazendo o dia 1º de janeiro, e víamos as luzinhas do porto de onde devíamos sair no dia seguinte, segunda-feira, para descermos o rio Amazonas e chegarmos ao Pará.

O encontro do rio Negro com o Solimões fica um pouco para a frente de Manaus, algo como meia hora depois da partida do barco. Aí vimos, hoje, as águas barrentas do Solimões se juntarem às nossas águas negras para formar, a partir daí, o Amazonas.

Esta é a primeira viagem que o navio-motor Luan, barco de ferro de três andares, faz na linha Manaus – Oriximiná (antes ele navegava entre Santarém e Macapá). Sairá daqui toda segunda às 12h para chegar em Orixi nas terças, descansar por dois dias e voltar nas quintas-feiras. Nosso destino fica pouco antes de Oriximiná: é a cidadezinha de Juruti, próxima ao Lago Grande do Curuai, rica em bauxita que é explorada pela Alcoa, gigante internacional da produção de alumínio. Depois de passar a noite nas redes amarradas no segundo andar do barco, devemos chegar pelo final da manhã.

Agora às 20h20 o céu já não tem resto nenhum de luminosidade, e neste trecho também não se veem luzinhas nas margens do rio; o céu está nublado e o nosso barco avança rápido no escuro total do rio Amazonas.