Do Curuai a Santarém

Alter do Chão (Santarém), madrugada de 10 para 11 de janeiro de 2012
Casa da Sirlaine e do Márcio

Foram dois dias, apenas uma noite, que passamos na Conceição.

Sem luz nem água encanada, a grande casa de madeira da sede da fazenda dorme suspensa sobre um altíssimo trapiche construído há 20 anos.

Nesta época do ano, quando as chuvas ainda acabaram de começar, as águas do Lago Grande do Curuai terminam uns 200 metros à frente da casa; durante o auge da cheia elas tomarão toda a faixa de terra até depois da construção, e o assoalho deve cantar com o seu marulho sob as tábuas enquanto o pequeno Joãozinho Diniz pula da varanda direto no lago pra nadar um pouquinho.

Se não é verdade nem nas regiões do sul brasileiro aquela europeia lição escolar sobre as quatro estações do ano, aqui no Norte ela é uma grande besteira. Existem duas estações que se alternam: o verão ou a seca, que se entendemos direito dura entre junho e outubro; e o inverno ou a cheia, que vai de novembro a maio. Portanto as chuvas começaram há pouco mais de um mês, e ainda não foram suficientes para fazer subir o nível do lago e dos rios.

As águas da Amazônia têm sido um tema constante nesta nossa viagem. Talvez não pudesse ser diferente, já que queremos nos alinhar com um movimento de defesa da bacia do rio Xingu. Mas é muito forte a maneira como o primeiro vislumbre do rio Negro em Manaus, o banho noturno no seu leito até o amanhecer, a viagem no navio de ferro até Juruti passando pelo encontro com o Solimões e entrando no grandioso Amazonas, a placidez dos pequenos lagos e igarapés, a majestade do Lago Grande do Curuai, as voadeiras, canoas, bajaras e rabetas que nos transportaram entre a vila e a fazenda, o barco a motor cruzando o lago prateado em noite de lua cheia até Santarém, a chegada à foz do rio Tapajós e a beleza das suas águas azuis verdejantes aqui no balneário de Alter-do-Chão foram todas experiências muito marcantes — principalmente pra Ju e Diana, que nunca tinham feito esse tipo de viagem fluvial. As noites dormidas nas redes com brisa; a sensação do banzeiro que sobra nos dias seguintes à chegada; o gosto doce e a temperatura morna destas águas acolhedoras; nadar nus; notar que cada um dos grandes rios tem uma cor diferente, uma força distinta, algo como um caráter próprio.

E ainda não vimos o rio Xingu.

Acabamos de descobrir que está em projeto, talvez bastante adiantado, a construção de cinco hidrelétricas ao longo do rio Tapajós ou de afluentes seus. Outras duas, as usinas de Jirau e Santo Antônio, já começam a barrar o rio Madeira em Rondônia. Coloque-se o nosso Xingu na conta e três dos mais grandiosos tributários da bacia amazônica estão com seu equilíbrio em perigo sério. O rio Tocantins já está represado desde 1984, com a construção de hidrelétricas das quais a principal é a de Tucuruí, bem próxima de Altamira.

***

Durante nossa estadia na fazenda de seu João e dona Alda Diniz, nos dedicamos a ler um capítulo crucial do livro Tenotã-Mõ, do engenheiro e professor da Unicamp Oswaldo Sevá (http://www.fem.unicamp.br/~seva/Tenota-Mo_caps1a3_pag92.pdf). A publicação, de 2008, detalha o projeto de seis hidrelétricas que assombra o rio Xingu desde o regime militar. Nos ensinou bastante sobre cada trecho do curso do rio, sobre os impactos que já se conseguem prever e sobre os detalhes do plano das barragens, que só fazem sentido no seu conjunto (por isso o temor de que Belo Monte seja apenas a primeira batalha que a indústria barrageira quer ganhar, para garantir a construção futura das próximas cinco usinas).

Mas a maior parte do tempo que passamos na fazenda Conceição foi levada em conversa, comida, rede, caminhada e contemplação. À noite, histórias ao redor da mesa rústica de madeira, sobre grandes sucurijus e surucucus que vivem por estas terras e, vez ou outra, cruzam os caminhos dos ribeirinhos.

Esse delicioso ritmo foi até a tarde do domingo, quando ganhamos mais uma hora e meia de barquinho rabeta sobre o lago para voltar à vila e embarcar no Cidade do Curuai, que saía às 19h para Santarém. Foi nossa vez de tomar parte no espetáculo colorido e esvoaçante da sobrelotação de redes nos dois andares do barco de madeira, em que se dorme como dá jeito, se come muito bem e se ouvem em volume alto as músicas românticas do sertanejo, do brega ou do forró. Muitos homens jovens viajavam, talvez porque é época para os pescadores de ir à sede do município assinar o seguro do defeso (o tempo em que os peixes se reproduzem e a atividade pesqueira tem de parar). Apesar da proibição da pesca nestes meses, o Antônio Gilmar, policial militar quase aposentado que nos contou e ensinou muitas coisas no início da viagem, diz que viu embarcar num outro barco em Curuai uns duzentos quilos de pirarucu que serão vendidos em Santarém.

Depois de horas cruzando o lago que, impressionantemente, se estende em amplidões bem maiores que as próprias margens do Amazonas, as luzes de Santarém despontaram à nossa frente. Aportamos na cidade pouco antes das 3h da madrugada, mas a embarcação não tem pressa e a maior parte dos passageiros continua dormindo até o amanhecer, quando desarma sua rede, toma sua mala e finalmente vai embora. Foi, naturalmente, o que fizemos também, até telefonarmos perto das 8h para a Sirlaine, amiga da Diana e nossa abrigadora aqui na cidade.

Ela e o marido nos recolheram no porto, depois de rodarmos um pouquinho pelo mercado municipal e pelo comércio das ruas portuárias de Santarém. Nos levaram diretamente para sua casa no balneário de Alter do Chão, onde passamos dois dias cozinhando, descansando, nos maravilhando com a praia de água doce da Ilha do Amor (conhecida, como se seu nome não fosse suficientemente piegas, como “o Caribe brasileiro”). Muito rio, muito céu, muita areia finíssima e quente, muitas pedras lindas como joias (oh pieguice), uma trilha de subida do Morro da Piroca para assistirmos ao sol se por, muita lua e luar iluminando a noite no Tapajós.

Muito sorvete de açaí, muito bombom de cupuaçu, uma única cervejinha Cerpa que estava sendo procurada desde o início desta viagem.

A curiosidade sobre a faixa contra as barragens no Tapajós nos levou a conversar com o Cebola, que nos apresentou ao Cauã, que trouxe junto o Lucas Jatobá; os três integram, de perto ou longe, um grupo de pessoas que começam a obter agora informações sobre os projetos de hidrelétricas neste oeste do Pará. Os dados ainda são escassos e ninguém sabe ao certo o calendário dessas obras. Houve em meados de 2011 um seminário em Itaituba (cidade de garimpos que também fica à beira do Tapajós, uns 400 km ao sul de Santarém) para que os povos e culturas do rio se reunissem e se informassem acerca dos planos; a sua articulação ainda está incipiente. Voltamos para casa percebendo enfim que, vindo aqui ao Pará preocupados com as violações perpetradas pelo projeto de Belo Monte, acabamos descobrindo que a usina de Altamira é apenas um dos grandes empreendimentos amazônicos que há décadas geram lucro ao governo, às grandes construtoras e às multinacionais mineradoras (para citar apenas os atores que já conseguimos identificar) e trazem devastação à floresta e aos seus povos.

Há diversos outros na história do país, e ainda muitos aguardam sua vez de sair do papel.

***

Amanhã, o Márcio (marido da Sirlaine) nos busca aqui em Alter às 8h e nos deixa na saída da BR-163, conhecida como Cuiabá-Santarém, para iniciarmos um dia inteiro de caronas. Desceremos a rodovia até o município de Rurópolis, onde ela faz entroncamento com a Transamazônica. Nesta outra estrada, tomaremos a direção leste para Altamira. Não temos informações seguras sobre o estado das duas rodovias e a duração da viagem; parece que, num ônibus de linha regular (com muitas paradas), ela está levando algo como sete horas. Estamos, portanto, preparados para esperar bastante.

Ao chegar encontraremos o Marcinho, que está neste momento a bordo de um ônibus vindo de Belém e programado para desembarcar em Altamira às 13h. Ele nos mandou agora uma mensagem de celular que diz: “Acabei de entrar no ônibus. Confortável, refrigerado e lotado. Previsão é de 20h de viagem, mas me disseram que é bem comum o pneu furar no trajeto e atrasar. Muita gente de mudança. O moço do meu lado e seu amigo tão indo trabalhar por lá”.

De Juruti à vila do Curuai

Alter do Chão (Santarém), 10 de janeiro de 2012, manhã
Casa de praia da Sirlaine e do Márcio, nossos anfitriões que agora estão em Santarém

Igapó, igarapé, maniçoba, muriçoca, carapanã, aruanã, pirarucu, piracuí, açaí, abacaba, tracajá, inajá, tauari, curuá, buruti, muruci, tucupi, tacacá, taperebá, tipiti, cupuaçu, bacuri, tucumã, tambaqui, mapará, acuri, tucunaré, tabatinga, muiraquitã.

Nos últimos dias, os nomes de Belo Monte e das cinco outras usinas que a indústria barrageira quer construir no rio Xingu — Babaquara, Iriri, Ipixuna, Kokraimoro e Jarina — têm povoado nossos pensamentos apenas nos momentos de descanso, quando continuamos a leitura do excelente material de estudo que trouxemos na viagem (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/11/24/bibliografia-comentada-50-leituras-sobre-o-ecocidio-de-belo-monte-1%C2%AA-parte/). Eles se misturam com os muitos outros nomes de lugares, comidas e bichos amazônicos que nos encantam. Algumas palavras evocam memórias pros que têm raízes aqui, outras ecoam raízes nordestinas, outras ainda nos lembram do desconhecimento total que temos, lá de São Paulo, sobre a vida e as coisas do Norte.

Às vezes é bom fazer um nó-de-rabicho com a corda ou então uma boca-de-lobo no punho, pra rede ficar na altura certa. Precisa esperar a eletricidade voltar pra bater um cacho de açaí e tomar ele fresco com farinha de tapioca. Tem que encher todo dia os baldes e o corote grande com água, pra poder usar a pia do banheiro e tomar banho. E tem que soltar a pata, matar a galinha, preparar o cozido, jogar e recolher a malhadeira, limpar o peixe. Tem que colocar farinha d’água no caldo do prato. E depois colocar um pouquinho mais. E lavar louça no jirau tirando com cuia a água bombada do poço pro barril. Remar com a Valdicleia na canoa pra ir duas vezes por dia tirar água da bajara descalafetada, senão afoga o motor. Perceber, sobre as paredes e esteios da casa de madeira, a altura da marca da cheia de 2009, quando a água subiu uns 60 centímetros acima do chão. Conversar de noite no luar do trapicho ouvindo os sapos, os grilos e o tecnobrega ao longe tocando na festa da Boa Vista, ali na outra margem do Lago. Imaginar o terçado da índia Tuíra vendo o terçado de dona Alda matar cobra surucucu e sucuriju grande assim.

***

Um igarapé é um pequeno curso d’água corrente que desemboca nos rios maiores; geralmente é ladeado por mata bem fechada e abriga um microclima mais fresco que o das ruas ribeirinhas, ou das grandes margens do Rio-Mar (neste não se costuma tomar banho, por causa das águas barrentas). Nos fundos da cidade de Juruti há um lago amplo, lindo e sereno que, sem ser exatamente um igarapé, matou nossa vontade de banho de rio e pôr-do-sol à beira do Amazonas. Isso aconteceu na tarde do dia 5, depois de uma manhã preguiçosa e chuvarenta que rendeu mais pesquisas, contatos para as próximas cidades e entrevistas com moradores sobre as mudanças vindas com o projeto de mineração. O dia também rendeu um papo com o Secretário de Gabinete do prefeito (que apontou para uma relação felizmente mais tensa do que pensávamos entre a prefeitura, petista, e a Alcoa) e um encontro marcado para dia 12 em Altamira com dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu e um dos militantes de décadas contra a construção da usina. Além de um belo mole de tabaco.

Foi na manhã seguinte, sexta-feira dia 6, que deixamos o alojamento paroquial de Juruti. Nosso próximo destino era a Vila do Curuai, distrito de Santarém que fica bem distante da sede do município — separado desta pela imensa massa d’água que é o Lago Grande do Curuai (http://g.co/maps/8mtca).

A ideia era acordar bem cedo naquele dia para estarmos na estrada o quanto antes e conseguirmos alguma carona. Sim, nesta etapa iríamos por terra, percorrendo uma parte da PA-257, a estrada local conhecida como Translago, que liga Juruti à beira do Tapajós (na comunidade do Patacho), onde é possível tomar uma balsa rápida até o porto de Santarém. Obviamente não conseguimos estar tão cedo quanto queríamos na estrada: já era quase 11h quando levantamos nossos polegares pela primeira vez, mas não demorou muito para os primeiros carros pararem. A maioria, na verdade, estava curiosa com as três figuras extravagantes fazendo sinais no acostamento e levantando folhas de papel com a inscrição curuai em letras grandes. Após algum tempo de espera, um caminhão encostou e o motorista se dispôs a nos levar até o início da Translago, 18 km à frente de onde estávamos e fim do trecho asfaltado para nós. Ele era baiano e veio a Juruti se aventurar nos trabalhos temporários da época de construção das instalações da mineradora. Quando minguaram os empregos dessa época, virou funcionário de um armazém local de material de construção transportando materiais diversos; naquela viagem, ia buscar uma carga de areia para o depósito.

Nos deixou no entroncamento do asfalto com a piçarra, e já no início dessa pequena estrada avistamos a primeira placa: “Rio Tapajós – 128 km”. Nem bem alguns minutos se passaram quando um caminhão tipo pau-de-arara apontou no caminho, trazendo duas famílias que vinham de Juruti e também se dirigiam para o Curuai. No começo relutante, o patriarca aceitou nos levar e subimos todos na caçamba. Eram famílias realmente numerosas, com mais alguns agregados: vinham naquele caminhão e em mais outro um pouco atrás. A maioria dos jovens estudava em Manaus e ia para a vila passar as férias, como nos contou a Olga, professora de matemática na metrópole manauara. A ligação deste oeste do Pará com a capital amazonense é muito maior do que propriamente com Belém. Esse é um dos motivos para a luta pela emancipação do estado do Tapajós, “região esquecida pelos políticos da capital” como ouvimos muitas vezes. Todos com quem conversamos em Santarém, Juruti e Curuai lamentam a derrota desse projeto no plebiscito recente sobre a divisão regional.

Passamos por diversas vilas pequenas com casas de madeira e cobertura de palha, de uma planta bem abundante na região. Por aqui e acolá há placas do governo estadual avisando sobre alguma obra ou melhoria que não se via na prática; outras anunciavam o programa federal de eletrificação rural (“Luz Para Todos”). Em meio a isso, a abundante floresta. Nosso motorista dirigia veloz, atacando todas as curvas com uma mescla de experiência e insensatez, tudo ao som da boa e velha aparelhagem paraense, desta vez em músicas dos Mundurukus — a “tribo” que duela todos os anos contra os Muirapinimas pelo título do Festribal, a versão jurutiense do Festival de Parintins, cidade vizinha mais ilustre. Mais alguns igarapés vencidos pela estrada e chegamos ao nosso destino, o Curuai.

A vila ganhou seu nome por conta da tribo indígena Curuaí que primeiro habitou o local há muitos séculos, mas que hoje só deixou lembranças distantes. Apesar de pequena, Curuai é a mais importante comunidade da beira do Lago Grande que leva seu nome. Esta é uma enorme região alagada, formada por parcelas de água do próprio rio Amazonas, alguns igarapés tributários e grandes faixas de várzea e de “terra firme” alagáveis. Na época da cheia as águas sobem vários metros e reconfiguram a paisagem; durante a seca se formam longas praias de areia branca e surgem algumas ilhas ou penínsulas. A região apresenta uma biodiversidade importante e um rico histórico de povoamento humano. Aqui estão as raízes da família do João.

Descemos próximo à igreja matriz e fomos lá em busca de agasalho. Nossa esperança era encontrar algum tipo de alojamento paroquial, semelhante ao que nos abrigou em Juruti. Passaríamos na vila apenas aquela noite, já que no dia seguinte bem cedo encontraríamos o tio do João no porto, chegando de barco de Santarém para nos levar até a sua fazenda, a Conceição. Nada feito. Tanto a igreja quanto a secretaria estavam fechadas: dona Maria, a sacristã, havia saído para o almoço e só retornaria dali a uma hora.

Ao lado da igreja estava o colégio municipal Thiago Xisto, e lá fomos buscar algumas informações. Raimundo, o jovem diretor, nos atendeu muito simpático mas não pôde oferecer abrigo ali mesmo no colégio. Acabamos deixamos as mochilas em sua sala para dar uma volta pela vila enquanto a igreja não abria.

Na saída da escola conhecemos Catebreu, funcionário da prefeitura em outro colégio e poeta de primeira ordem, figura irreverente e muito conversadora. Fez questão de nos levar para conhecer a biblioteca pública que estava a seus cuidados. Pequena e estreita, ela abrigava um amontoado de livros, vários deles didáticos, algumas aranhas e mariposas, e um exemplar de O que é Socialismo do Tragtenberg parecendo fora do seu lugar. Lá mesmo nos ofereceu acolhida em sua casa, onde mora com seus pais, o que prontamente aceitamos com muita satisfação. Foi então que conhecemos o grande seu Ezequiel e sua esposa dona Laureci.

Seu Ezequiel é uma dessas figuras cablocas que representam com maestria a história do povo ribeirinho do Lago Grande. Com traços fortes, mais negros que indígenas, cabelos já branqueados pelo tempo, fala mansa muito bem articulada, cerimonioso em alguns momentos, experiência de quem viveu muitas cheias e vazantes do rio, desses que conseguem conversar sobre qualquer assunto, sabedoria popular, pulsante, falante, com o fino sotaque marcado de ribeirinho paraense, pausas poéticas para organizar as ideias e movimentos coordenados de mãos e sobrancelhas para enfatizar as passagens mais importantes. Um contador de causos dos mais competentes, sabedor da primazia dos detalhes em toda história e conhecedor das muitas da malandragem do jabuti ou do macaco, capazes de lograr na esperteza a força meio besta da onça pintada.

Conversamos durante algum tempo até o Catebreu ter a ideia de nos levar a um igarapé próximo — o fim da tarde se aproximava e o calor ainda era grande. Fomos os quatro.

O caminho era longo (mesmo porque incluía um almocinho e um açaí com tapioca). Passamos por boa parte da vila, incluindo a pista de pouso local (que, segundo disseram tanto a Olga quanto o Catebreu, só recebe aviões em época de eleições municipais). Fomos apresentados também ao curuá, a palmeira rasteira que dá um coquinho pequeno de mesmo nome e da qual se extrai a palha branca, usada para a cobertura dos telhados das casas, como vimos nas comunidades à beira da Translago.

O igarapé do Cambeta é um lugar precioso. Águas claríssimas, bem frias, uma prainha convidativa e, um pouco mais adentro do curso d’água, uma correnteza moderada. Peixes pequenos nos rodeavam e a sensação da água passando pelo corpo foi restauradora.

Já no caminho de volta, logo após o entardecer, conhecemos a Rádio Lago, uma estação comunitária que transmite somente músicas nacionais e locais para o Curuai e parte do Lago Grande. Zaira Vasconcelos, uma jovem dos seus 19 anos, apresentava o programa “Fim de Noite”, um pouco perdida naquele momento pela ausência do técnico de som. Na antessala, pequenas caixinhas individuais com pedidos de música para cada um dos programas apresentados (o de Zaira era o mais requisitado dentre todos). A locutora fez um agradecimento rápido durante a programação aos “amigos visitantes vindos de longe” e nos ofereceu com carinho um Michel Teló ao vivo. Retornamos à casa de Catebreu e seu Ezequiel, que estava já algo preocupado com a nossa demora. Cadeiras na calçada, tragadas no nosso cigarrinho de mole, visita breve de um compadre que chegava de Santarém, e fomos nos recolher cedo para encontrar, ainda na madrugada, com o João Diniz — não o nosso, mas o seu quase-homônimo tio.

Os barcos de Santarém começam a aportar no cais do Curuai por volta das 4h. Ouvem-se suas buzinas ao longe, e na rua se escutam os carros de boi que, táxis amazônicos, vêm carregar as matulas de quem volta para casa. A iluminação pública, que chegou na vila há poucos anos, falhou no momento em que saíamos. De mochila nas costas sobre a calçada, ainda ouvimos uns causos emendados do seu Ezequiel até decidirmos ir para o cais usando a lanterna mesmo.

O caminho era bem curto. Já estavam aportados o Sousa Pereira, o Ribeiro Filho e o Gavião, pequenos barcos a motor (super)lotados de redes coloridas e por cujas estreitas rampinhas de descida não parava de sair gente e pacote atrás de pacote. Mas faltava justamente o Cidade do Curuai, onde vinham seu João Diniz com dona Alda e o netinho de cinco anos (cujo nome e sobrenome, adivinhem qual era). Conversando com os carregadores, descobrimos que aquela luzinha que se via bem longe parada havia um tempinho era o barco que aguardávamos, encalhado no lago. Mas o desencalhe foi breve, a embarcação chegou e com mais algum tempo de espera entramos todos na voadeira que nos levaria à sede da Conceição, distante uma hora e meia pelas águas Lago Grande.

Foi quando estivemos mais perto de observar esse interior ribeirinho do Pará. (Perdão: do Tapajós.) Era dia 7, sábado. De lá para este dia de hoje em Alter do Chão ainda resta bastante o que contar, mas a tarde já avança e precisamos procurar a entidade daqui que colocou na praça uma faixa com as frases “ESSE RIO É NOSSO – Fora as hidrelétricas do Tapajós”. Quem assina a faixa é um selo que diz “Defesa da Bacia do Rio Tapajós, seus Povos e Culturas” e, como sabemos que há usinas projetadas também para este outro rio, estamos muito curiosos para conhecer o movimento que começa a se articular com o objetivo e se opor à sua construção.

De Manaus a Juruti

Rio Amazonas, 2 de janeiro de 2012
A bordo do navio-motor Luan, saído de Manaus com destino a Juruti. 19h em Manaus

Chegamos aqui no último dia do ano por volta das 13h no horário local (15h em São Paulo) e, logo ao sairmos pela porta do avião, o calor e a umidade nos deram as boas-vindas. Bem-vindos a Manaus, a metrópole amazônica. Com pouco mais de de 2 milhões de habitantes, a cidade está engastada no meio da floresta.

No trajeto do aeroporto até a casa de nosso anfitrião local passamos por boa parte da cidade, incluindo as obras do estádio que abrigará alguns jogos da Copa de 2014, mensagens de boas-festas de uma senadora em alguns outdoors, muito comércio popular e pessoas por todo lado com fortes traços indígenas, gente linda, forte e curiosa sobre nós.“Oi, falam português?”, perguntou um guia turístico local ainda no aeroporto.

No bairro do Coroado, zona leste da cidade, o Arthur (namorado de uma amiga de infância do João, lá de Bauru) já nos esperava há um bom tempo. Cara simpático, robusto, traços igualmente fortes, professor de história recém-aprovado no concurso da rede estadual, nos aguentaria durante muitas conversas pelos dois dias que se seguiram.

Depois de um banho e uma soneca curta, pegamos um ônibus para o centro da cidade e passamos os pontos turísticos desertos: a Praça da Saudade recentemente restaurada, as construções antigas do ciclo da borracha, o Teatro Amazonas e o calçamento português do largo em frente a ele, onde ondas pretas e brancas como as das calçadas de Copacabana (que o Arthur diz que foram cópia dali) aludem ao encontro das águas. Ainda fomos ao porto buscar informações sobre o próximo barco para Juruti e Santarém.

Quando faltavam 40 minutos para a chegada de 2012, estávamos no terminal de ônibus chamado de T1. A intenção era tomar a linha 120 para chegar a tempo de ver a queima de fogos na orla do rio Negro. Mas o tal coletivo nunca chegou e ali mesmo, aos abraços, compartilhamos a virada de ano. Pouco tempo depois resolvemos andar. Caminhamos por mais de três horas até a Ponta Negra, onde o rio faz uma prainha.

Era um dos quatro pontos da cidade em que a prefeitura havia organizado shows para a programação oficial da virada. Quase lá, avançávamos contra a corrente das muitas famílias, casais e grupos de amigos que voltavam da comemoração com sandálias nas mãos, crianças e bebês adormecidos nos colos, rostos cansados e felizes apinhando os pontos de ônibus à espera dos primeiros carros da madrugada — do ano.

Na Ponta Negra, com os músculos e os pés doídos, nos juntamos a muita gente que ainda permaneceu na orla, conversando na areia ou tomando banho. A praia nesse ponto desce suave, sem tombo, e entrando no rio o corpo sentiu aos poucos o calor (mesmo na madrugada) das águas pesadas, escuras, macias do rio Negro. As roupas ficaram no último banco de areia da prainha (daquele ponto em diante, máquinas da prefeitura faziam obras na praia durante a noite toda, talvez para ampliar a área do pequeno balneário) e passamos o restante das horas escuras dentro das águas, até o nascer do sol. Assistimos, mergulhados no rio Negro, ao ano amanhecer.

Manaus está na margem norte do rio Negro. De onde olhávamos, à esquerda era o caminho de quem sobe o rio até chegar a São Gabriel da Cachoeira, último município do Amazonas e fronteira com a Colômbia e a Venezuela. À nossa direita era o leste: víamos a ponte que liga a metrópole à outra margem (cuja construção começou há oito anos, foi encerrada há dois meses e cheira a superfaturamento, e cuja inauguração contou com a presença da presidenta Dilma que, segundo o Arthur, não aguentou o calor e desistiu da travessia); víamos também os primeiros clarões do sol trazendo o dia 1º de janeiro, e víamos as luzinhas do porto de onde devíamos sair no dia seguinte, segunda-feira, para descermos o rio Amazonas e chegarmos ao Pará.

O encontro do rio Negro com o Solimões fica um pouco para a frente de Manaus, algo como meia hora depois da partida do barco. Aí vimos, hoje, as águas barrentas do Solimões se juntarem às nossas águas negras para formar, a partir daí, o Amazonas.

Esta é a primeira viagem que o navio-motor Luan, barco de ferro de três andares, faz na linha Manaus – Oriximiná (antes ele navegava entre Santarém e Macapá). Sairá daqui toda segunda às 12h para chegar em Orixi nas terças, descansar por dois dias e voltar nas quintas-feiras. Nosso destino fica pouco antes de Oriximiná: é a cidadezinha de Juruti, próxima ao Lago Grande do Curuai, rica em bauxita que é explorada pela Alcoa, gigante internacional da produção de alumínio. Depois de passar a noite nas redes amarradas no segundo andar do barco, devemos chegar pelo final da manhã.

Agora às 20h20 o céu já não tem resto nenhum de luminosidade, e neste trecho também não se veem luzinhas nas margens do rio; o céu está nublado e o nosso barco avança rápido no escuro total do rio Amazonas.