De Juruti à vila do Curuai

Alter do Chão (Santarém), 10 de janeiro de 2012, manhã
Casa de praia da Sirlaine e do Márcio, nossos anfitriões que agora estão em Santarém

Igapó, igarapé, maniçoba, muriçoca, carapanã, aruanã, pirarucu, piracuí, açaí, abacaba, tracajá, inajá, tauari, curuá, buruti, muruci, tucupi, tacacá, taperebá, tipiti, cupuaçu, bacuri, tucumã, tambaqui, mapará, acuri, tucunaré, tabatinga, muiraquitã.

Nos últimos dias, os nomes de Belo Monte e das cinco outras usinas que a indústria barrageira quer construir no rio Xingu — Babaquara, Iriri, Ipixuna, Kokraimoro e Jarina — têm povoado nossos pensamentos apenas nos momentos de descanso, quando continuamos a leitura do excelente material de estudo que trouxemos na viagem (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/11/24/bibliografia-comentada-50-leituras-sobre-o-ecocidio-de-belo-monte-1%C2%AA-parte/). Eles se misturam com os muitos outros nomes de lugares, comidas e bichos amazônicos que nos encantam. Algumas palavras evocam memórias pros que têm raízes aqui, outras ecoam raízes nordestinas, outras ainda nos lembram do desconhecimento total que temos, lá de São Paulo, sobre a vida e as coisas do Norte.

Às vezes é bom fazer um nó-de-rabicho com a corda ou então uma boca-de-lobo no punho, pra rede ficar na altura certa. Precisa esperar a eletricidade voltar pra bater um cacho de açaí e tomar ele fresco com farinha de tapioca. Tem que encher todo dia os baldes e o corote grande com água, pra poder usar a pia do banheiro e tomar banho. E tem que soltar a pata, matar a galinha, preparar o cozido, jogar e recolher a malhadeira, limpar o peixe. Tem que colocar farinha d’água no caldo do prato. E depois colocar um pouquinho mais. E lavar louça no jirau tirando com cuia a água bombada do poço pro barril. Remar com a Valdicleia na canoa pra ir duas vezes por dia tirar água da bajara descalafetada, senão afoga o motor. Perceber, sobre as paredes e esteios da casa de madeira, a altura da marca da cheia de 2009, quando a água subiu uns 60 centímetros acima do chão. Conversar de noite no luar do trapicho ouvindo os sapos, os grilos e o tecnobrega ao longe tocando na festa da Boa Vista, ali na outra margem do Lago. Imaginar o terçado da índia Tuíra vendo o terçado de dona Alda matar cobra surucucu e sucuriju grande assim.

***

Um igarapé é um pequeno curso d’água corrente que desemboca nos rios maiores; geralmente é ladeado por mata bem fechada e abriga um microclima mais fresco que o das ruas ribeirinhas, ou das grandes margens do Rio-Mar (neste não se costuma tomar banho, por causa das águas barrentas). Nos fundos da cidade de Juruti há um lago amplo, lindo e sereno que, sem ser exatamente um igarapé, matou nossa vontade de banho de rio e pôr-do-sol à beira do Amazonas. Isso aconteceu na tarde do dia 5, depois de uma manhã preguiçosa e chuvarenta que rendeu mais pesquisas, contatos para as próximas cidades e entrevistas com moradores sobre as mudanças vindas com o projeto de mineração. O dia também rendeu um papo com o Secretário de Gabinete do prefeito (que apontou para uma relação felizmente mais tensa do que pensávamos entre a prefeitura, petista, e a Alcoa) e um encontro marcado para dia 12 em Altamira com dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu e um dos militantes de décadas contra a construção da usina. Além de um belo mole de tabaco.

Foi na manhã seguinte, sexta-feira dia 6, que deixamos o alojamento paroquial de Juruti. Nosso próximo destino era a Vila do Curuai, distrito de Santarém que fica bem distante da sede do município — separado desta pela imensa massa d’água que é o Lago Grande do Curuai (http://g.co/maps/8mtca).

A ideia era acordar bem cedo naquele dia para estarmos na estrada o quanto antes e conseguirmos alguma carona. Sim, nesta etapa iríamos por terra, percorrendo uma parte da PA-257, a estrada local conhecida como Translago, que liga Juruti à beira do Tapajós (na comunidade do Patacho), onde é possível tomar uma balsa rápida até o porto de Santarém. Obviamente não conseguimos estar tão cedo quanto queríamos na estrada: já era quase 11h quando levantamos nossos polegares pela primeira vez, mas não demorou muito para os primeiros carros pararem. A maioria, na verdade, estava curiosa com as três figuras extravagantes fazendo sinais no acostamento e levantando folhas de papel com a inscrição curuai em letras grandes. Após algum tempo de espera, um caminhão encostou e o motorista se dispôs a nos levar até o início da Translago, 18 km à frente de onde estávamos e fim do trecho asfaltado para nós. Ele era baiano e veio a Juruti se aventurar nos trabalhos temporários da época de construção das instalações da mineradora. Quando minguaram os empregos dessa época, virou funcionário de um armazém local de material de construção transportando materiais diversos; naquela viagem, ia buscar uma carga de areia para o depósito.

Nos deixou no entroncamento do asfalto com a piçarra, e já no início dessa pequena estrada avistamos a primeira placa: “Rio Tapajós – 128 km”. Nem bem alguns minutos se passaram quando um caminhão tipo pau-de-arara apontou no caminho, trazendo duas famílias que vinham de Juruti e também se dirigiam para o Curuai. No começo relutante, o patriarca aceitou nos levar e subimos todos na caçamba. Eram famílias realmente numerosas, com mais alguns agregados: vinham naquele caminhão e em mais outro um pouco atrás. A maioria dos jovens estudava em Manaus e ia para a vila passar as férias, como nos contou a Olga, professora de matemática na metrópole manauara. A ligação deste oeste do Pará com a capital amazonense é muito maior do que propriamente com Belém. Esse é um dos motivos para a luta pela emancipação do estado do Tapajós, “região esquecida pelos políticos da capital” como ouvimos muitas vezes. Todos com quem conversamos em Santarém, Juruti e Curuai lamentam a derrota desse projeto no plebiscito recente sobre a divisão regional.

Passamos por diversas vilas pequenas com casas de madeira e cobertura de palha, de uma planta bem abundante na região. Por aqui e acolá há placas do governo estadual avisando sobre alguma obra ou melhoria que não se via na prática; outras anunciavam o programa federal de eletrificação rural (“Luz Para Todos”). Em meio a isso, a abundante floresta. Nosso motorista dirigia veloz, atacando todas as curvas com uma mescla de experiência e insensatez, tudo ao som da boa e velha aparelhagem paraense, desta vez em músicas dos Mundurukus — a “tribo” que duela todos os anos contra os Muirapinimas pelo título do Festribal, a versão jurutiense do Festival de Parintins, cidade vizinha mais ilustre. Mais alguns igarapés vencidos pela estrada e chegamos ao nosso destino, o Curuai.

A vila ganhou seu nome por conta da tribo indígena Curuaí que primeiro habitou o local há muitos séculos, mas que hoje só deixou lembranças distantes. Apesar de pequena, Curuai é a mais importante comunidade da beira do Lago Grande que leva seu nome. Esta é uma enorme região alagada, formada por parcelas de água do próprio rio Amazonas, alguns igarapés tributários e grandes faixas de várzea e de “terra firme” alagáveis. Na época da cheia as águas sobem vários metros e reconfiguram a paisagem; durante a seca se formam longas praias de areia branca e surgem algumas ilhas ou penínsulas. A região apresenta uma biodiversidade importante e um rico histórico de povoamento humano. Aqui estão as raízes da família do João.

Descemos próximo à igreja matriz e fomos lá em busca de agasalho. Nossa esperança era encontrar algum tipo de alojamento paroquial, semelhante ao que nos abrigou em Juruti. Passaríamos na vila apenas aquela noite, já que no dia seguinte bem cedo encontraríamos o tio do João no porto, chegando de barco de Santarém para nos levar até a sua fazenda, a Conceição. Nada feito. Tanto a igreja quanto a secretaria estavam fechadas: dona Maria, a sacristã, havia saído para o almoço e só retornaria dali a uma hora.

Ao lado da igreja estava o colégio municipal Thiago Xisto, e lá fomos buscar algumas informações. Raimundo, o jovem diretor, nos atendeu muito simpático mas não pôde oferecer abrigo ali mesmo no colégio. Acabamos deixamos as mochilas em sua sala para dar uma volta pela vila enquanto a igreja não abria.

Na saída da escola conhecemos Catebreu, funcionário da prefeitura em outro colégio e poeta de primeira ordem, figura irreverente e muito conversadora. Fez questão de nos levar para conhecer a biblioteca pública que estava a seus cuidados. Pequena e estreita, ela abrigava um amontoado de livros, vários deles didáticos, algumas aranhas e mariposas, e um exemplar de O que é Socialismo do Tragtenberg parecendo fora do seu lugar. Lá mesmo nos ofereceu acolhida em sua casa, onde mora com seus pais, o que prontamente aceitamos com muita satisfação. Foi então que conhecemos o grande seu Ezequiel e sua esposa dona Laureci.

Seu Ezequiel é uma dessas figuras cablocas que representam com maestria a história do povo ribeirinho do Lago Grande. Com traços fortes, mais negros que indígenas, cabelos já branqueados pelo tempo, fala mansa muito bem articulada, cerimonioso em alguns momentos, experiência de quem viveu muitas cheias e vazantes do rio, desses que conseguem conversar sobre qualquer assunto, sabedoria popular, pulsante, falante, com o fino sotaque marcado de ribeirinho paraense, pausas poéticas para organizar as ideias e movimentos coordenados de mãos e sobrancelhas para enfatizar as passagens mais importantes. Um contador de causos dos mais competentes, sabedor da primazia dos detalhes em toda história e conhecedor das muitas da malandragem do jabuti ou do macaco, capazes de lograr na esperteza a força meio besta da onça pintada.

Conversamos durante algum tempo até o Catebreu ter a ideia de nos levar a um igarapé próximo — o fim da tarde se aproximava e o calor ainda era grande. Fomos os quatro.

O caminho era longo (mesmo porque incluía um almocinho e um açaí com tapioca). Passamos por boa parte da vila, incluindo a pista de pouso local (que, segundo disseram tanto a Olga quanto o Catebreu, só recebe aviões em época de eleições municipais). Fomos apresentados também ao curuá, a palmeira rasteira que dá um coquinho pequeno de mesmo nome e da qual se extrai a palha branca, usada para a cobertura dos telhados das casas, como vimos nas comunidades à beira da Translago.

O igarapé do Cambeta é um lugar precioso. Águas claríssimas, bem frias, uma prainha convidativa e, um pouco mais adentro do curso d’água, uma correnteza moderada. Peixes pequenos nos rodeavam e a sensação da água passando pelo corpo foi restauradora.

Já no caminho de volta, logo após o entardecer, conhecemos a Rádio Lago, uma estação comunitária que transmite somente músicas nacionais e locais para o Curuai e parte do Lago Grande. Zaira Vasconcelos, uma jovem dos seus 19 anos, apresentava o programa “Fim de Noite”, um pouco perdida naquele momento pela ausência do técnico de som. Na antessala, pequenas caixinhas individuais com pedidos de música para cada um dos programas apresentados (o de Zaira era o mais requisitado dentre todos). A locutora fez um agradecimento rápido durante a programação aos “amigos visitantes vindos de longe” e nos ofereceu com carinho um Michel Teló ao vivo. Retornamos à casa de Catebreu e seu Ezequiel, que estava já algo preocupado com a nossa demora. Cadeiras na calçada, tragadas no nosso cigarrinho de mole, visita breve de um compadre que chegava de Santarém, e fomos nos recolher cedo para encontrar, ainda na madrugada, com o João Diniz — não o nosso, mas o seu quase-homônimo tio.

Os barcos de Santarém começam a aportar no cais do Curuai por volta das 4h. Ouvem-se suas buzinas ao longe, e na rua se escutam os carros de boi que, táxis amazônicos, vêm carregar as matulas de quem volta para casa. A iluminação pública, que chegou na vila há poucos anos, falhou no momento em que saíamos. De mochila nas costas sobre a calçada, ainda ouvimos uns causos emendados do seu Ezequiel até decidirmos ir para o cais usando a lanterna mesmo.

O caminho era bem curto. Já estavam aportados o Sousa Pereira, o Ribeiro Filho e o Gavião, pequenos barcos a motor (super)lotados de redes coloridas e por cujas estreitas rampinhas de descida não parava de sair gente e pacote atrás de pacote. Mas faltava justamente o Cidade do Curuai, onde vinham seu João Diniz com dona Alda e o netinho de cinco anos (cujo nome e sobrenome, adivinhem qual era). Conversando com os carregadores, descobrimos que aquela luzinha que se via bem longe parada havia um tempinho era o barco que aguardávamos, encalhado no lago. Mas o desencalhe foi breve, a embarcação chegou e com mais algum tempo de espera entramos todos na voadeira que nos levaria à sede da Conceição, distante uma hora e meia pelas águas Lago Grande.

Foi quando estivemos mais perto de observar esse interior ribeirinho do Pará. (Perdão: do Tapajós.) Era dia 7, sábado. De lá para este dia de hoje em Alter do Chão ainda resta bastante o que contar, mas a tarde já avança e precisamos procurar a entidade daqui que colocou na praça uma faixa com as frases “ESSE RIO É NOSSO – Fora as hidrelétricas do Tapajós”. Quem assina a faixa é um selo que diz “Defesa da Bacia do Rio Tapajós, seus Povos e Culturas” e, como sabemos que há usinas projetadas também para este outro rio, estamos muito curiosos para conhecer o movimento que começa a se articular com o objetivo e se opor à sua construção.

Em Juruti

Juruti, 4 de janeiro de 2012
Alojamento paroquial da Igreja de N.S. da Saúde, cujo sino toca agora as badaladas da meia-noite. 
Ao som de grilos, sapos e Raízes Caboclas — o mais famoso grupo de Música Popular Amazônica (http://www.youtube.com/watch?v=lRanVBbre3c)

Pela manhã de ontem, nas últimas horas da viagem de barco, um senhor de Parintins nos perguntou “Mas o que vocês vão fazer em Juruti? Não tem nada lá!”.

De todas as cidades desta linha fluvial (Manaus e Parintins ficam antes, e depois estão Óbidos, Oriximiná e Santarém), Juruti era até agora a menos importante e com menos atrativos turísticos. Mas em 2006 a multinacional Alcoa, gigante da produção de alumínio, começou a instalar aqui o que hoje todos chamam de “o Projeto de Mineração”. Após fazer, desde o início da década, os estudos de prospecção que revelariam uma das jazidas de bauxita mais ricas do mundo (a exploração deve durar 70 anos e cada quatro toneladas do minério rendem uma tonelada de alumínio, o que é uma proporção inusualmente alta), a corporação passou dois anos instalando estruturas e iniciando os diálogos com a população, para apenas em 2009 iniciar as operações de extração, beneficiamento e venda de bauxita na Mina de Juruti.

Descemos às 13h no pequeno porto da cidade. Aqui nasceu o pai do João.

Nossa primeira inquietação ao andarmos pelas ruas de Juruti era o fato de haver como que um véu de novidade sobre ela. Os comércios são impecáveis, assim como as pessoas dentro deles, comprando ou vendendo, exceto por alguns velhinhos. Há uma quantidade grande de drogarias, casas de construção, lan houses e lojas de celulares, sobretudo estas. Muitos jovens andavam pela rua, conversavam na praça, ensaiavam num galpão para integrar com perfeição a apresentação do Garantido no festival do Boi de Parintins em junho. Alguns no estilo do skate, alguns com jeito de emo, nenhum com as nossas roupas de bicho grilo e rostos vermelhos sofrendo o esquecimento do protetor solar. Duas crianças de bicicleta perguntaram ao João “Você é hippie, né?”.

Essa primeira tarde foi ocupada com a busca de lugar para dormirmos (foi o Francinei, funcionário da sacristia, quem conversou com o padre auxiliar da paróquia e nos colocou neste alojamento, depois de batermos à porta de outra das muitas igrejas evangélicas da cidade), e com duas horas de lan house para pesquisarmos alguns dados, enviarmos nosso primeiro relato e recebermos notícias da Ocupa, da viagem de Duda e Carol a Porto Alegre, das famílias, das pessoas queridas e tudo o mais. Eram já 18h quando armamos nossas redes e tomamos, aliviados, o segundo banho do dia. No Pará é assim: menos de três duchas diárias é para os fortes (http://www.facebook.com/noamazonas).

Uma volta pela cidade à noite, janta caseira à base de carne-de-sol (que segundo a Ju não é a mesma coisa que carne-seca, lição aprendida), cervejinha no Bar do Chinês, conversinha delícia na varanda do alojamento até altas horas e depois noite de sono embalado na rede com chuva o tempo todo até de manhã. Para hoje tínhamos conseguido marcar uma conversa (no balcão da farmácia — “Oi, eu queria falar com alguém da Alcoa, como eu faço?” — “Hm, eu tenho um amigo que conhece uma funcionária da Alcoa, peraí” — telefonema — outro telefonema — encontro marcado, no Pará é assim…) com Anne Alamar Dias, analista de relações comunitárias da Alcoa, explicando que somos estudantes, estamos em viagem de férias e gostaríamos de conhecer o projeto de mineração. Às 14h saímos do alojamento em direção ao km 2 da rodovia estadual PA-257, onde fica a sede da Mina de Juruti.

Mas o caminho foi longo e só encontraríamos de fato a solícita Anne por volta das 18h. As horas passaram numa longa espera em outra portaria da Alcoa, talvez por um desencontro entre as nossas informações e as dela, mas foram também cheias de encontros interessantes. O primeiro deles aconteceu ainda dentro da cidade, quando passamos em frente a um pátio de propriedade da Secretaria de Meio Ambiente onde um caminhão carregava na carroceria dois imensos segmentos de tronco bruto de pau-d’arco, ao lado de outro veículo com a carroceria cheia de toras já beneficiadas de cedro. Os dois lotes de madeira nobre, extraída ilegalmente, haviam sido apreendidos pelo Ibama e aguardavam destinação por ali. O caminhão com cedro trazia, no para-brisa, um adesivo que dizia “Movido a Biodiesel: ajudando a construir um mundo sustentável”, seguido do símbolo da Volkswagen; peça de humor, definitivamente. Quem nos deu as explicações foi um gari que aguardava por ali a chegada de um colega.

Logo no início da rodovia uma construção grande e muito moderna atraiu a nossa atenção. Tinha uma placa na frente, ainda vazia de letreiro. Tudo indicava que aguardava ser inaugurada. Fomos perguntar o que era ao vigia que ocupava uma grande guarita na sua entrada. É um hospital, já totalmente equipado (conforme nos explicaram primeiro o moço, e depois com mais detalhes a própria Anne), que deve entrar em funcionamento dentro de poucos meses. Será administrado por uma fundação contratada pela Alcoa, e atenderá os funcionários da mineração — mas também firmou convênio com o SUS para realizar o atendimento dos habitantes de Juruti.

O moço, cujo nome agora esquecemos, veio de Santarém com o irmão para ocuparem dois dos milhares de postos de trabalho abertos com a vinda da Alcoa para cá. É vigilante na Atlântica, empresa terceirizada que realiza a segurança das instalações da multinacional. O irmão conseguiu o posto de inspetor. Eles trabalham durante quinze dias e depois têm mais quinze de folga. O vigia pensa em casar com a moça que hoje namora e mudar-se de vez para Juruti, em vez de passar, como faz hoje, os quinze dias livres em Santarém “gastando tudo o que eu ganhei nos outros quinze dias”. Especula que em São Paulo deve fazer frio, e tem um primo que deixou a metrópole paulista para viver em Santarém — uma cidade mais tranquila mas que tem tudo, “a capital do nosso estado do Tapajós”.

Da altura do hospital até a portaria da Alcoa no km 2, onde achávamos que deveríamos encontrar a Anne, pedimos carona na estrada para fugir do sol forte. Quem nos transportou foi um rapaz que viajava num carro de passeio branco. A Ju lhe perguntou, no chute: “Você trabalha para a Alcoa?”. Ele respondeu que não: que tinha uma locadora de carros. “Que presta serviço para a Alcoa?”, chutamos de novo. Desta vez acertamos.

Na portaria 2 funcionam, segundo o que conseguimos ver, quatro equipamentos da multinacional: uma Estação de Tratamentos de Efluentes que lida com todo o resíduo dos banheiros químicos utilizados nas instalações, uma Mini-Empresa que realiza qualificação profissional inicial para os filhos dos funcionários alcoanos, uma unidade do Senai onde acontecem os cursos técnicos destinados aos habitantes de Juruti para ocuparem postos na mineração, e um centro de treinamento em temas de SSMA (Saúde, Segurança e Meio Ambiente) voltado aos empregados diretos e terceirizados da mina.

Quando já havíamos visto e fotografado todos os detalhes possíveis dessas instalações e começávamos a ficar entediados com as músicas de tecnobrega tocadas no celular de uma alegre funcionária de limpeza do centro de treinamento, desistimos da instrução de aguardar a Anne e fomos atrás dela em seu escritório. Conseguimos carona com um dos funcionários da empresa terceirizada de segurança. No trajeto, passamos ao lado de uma comunidade formada por casas muito simples, algumas precárias. Perguntamos se aquele bairro existia há muito tempo. “Não, é uma invasão, deve ter uns quatro anos só, são as pessoas que vieram pra cá por causa da mineradora.” “— São funcionários da Alcoa?”. Ele responde: “Não, ninguém”.

Anne se encontrava em sua sala, ao lado da portaria 1, espaço apertado em que se responsabiliza por todas as frentes de articulação entre a multinacional e a comunidade, além de atender pessoalmente aos “comunitários” que procuram algum esclarecimento ou apresentam alguma demanda à empresa.

Anne é de Belém e está em Juruti há 4 anos, desde o princípio da implantação da mina (depois viríamos a saber que sua história pessoal é marcada pela mineração, pois seus pais já trabalhavam nesse ramo desde sua infância, passando por importantes jazidas, como a de Carajás). Segundo ela, a mina de Juruti é um empreendimento muito diferente dos demais: “Trata-se de um modelo de mineração sustentável, único no mundo atualmente”, por conta da “aproximação com a comunidade”. A Alcoa construiu, além do hospital que visitamos, mais um, para baixas complexidades e que já foi doado à Prefeitura, A mineradora mantém também uma espécie de Conselho Municipal de Sustentabilidade, integrado pelo poder público local, sindicatos e associações locais, câmara de comércio, entre outros. Pelo que consta, é responsabilidade desse conselho avaliar as práticas de sustentabilidade ambiental e social em prática na cidade. Ele se reúne quinzenalmente.

Um dos principais focos da “ação comunitária” da multinacional são atividades de voluntariado promovidas por seus funcionários junto aos “comunitários” (população da cidade, principalmente das vilas e localidades mais próximas à mineração, que formam Juruti Velho). É comum a empresa ser confundida com o poder local ou estadual e ser cobrada por serviços públicos não prestados.

O suprimento de energia para os processos de extração e beneficiamento da bauxita é garantido por minitermoelétricas instaladas na área da própria mineradora, que funcionam à base de óleo diesel fornecido pela Petrobrás. Por conta dessa limitação, não é possível também fazer em Juruti o processo de transformação da bauxita em lingotes de alumínio. O material beneficiado (bauxita em estado bruto, triturada em pequenas rochas do tamanho de um punho fechado) é carregado de navio até São Luís do Maranhão, onde o processo de transformação é feito pela Alumar (empresa formada pela própria Alcoa, Camargo Corrêa e outras companhias). Caso houvesse suprimento garantido de energia a custos baixos, a Alcoa certamente faria todo o processo em Juruti, sem precisar repassar o material ainda em estado bruto a outra empresa. Belo Monte parece encaixar como uma luva nesse panorama.

A conversa foi longa e salpicada por muitos dados e informações, algumas delas relevantes, como a de que o Presidente da Alcoa para a América Latina e Caribe é um homem “muito educado e charmoso”. Ao final, levamos pra casa belos exemplares de bauxita em cubos de resina transparente, com o símbolo da mineradora em uma das faces e o nome da Mina de Juruti em outra.

Saímos de lá felizes pelo encontro ter acontecido e um pouco atônitos. Toda essa lógica de “desenvolvimento” do país e da Amazônia é muito grande, tudo está embricado, se relaciona entre si, atende a anseios de múltiplos lados, e quando uma mineradora resolve por em prática o que de mais “radical” se viu até o momento em ação política e assistência social no local de uma de suas jazidas, as coisas parecem ficar ainda mais complicadas.

Amanhã será um dia importante, o último na cidade, e ainda temos muitas conversas para ter e igarapés para nadar.

De Manaus a Juruti

Rio Amazonas, 2 de janeiro de 2012
A bordo do navio-motor Luan, saído de Manaus com destino a Juruti. 19h em Manaus

Chegamos aqui no último dia do ano por volta das 13h no horário local (15h em São Paulo) e, logo ao sairmos pela porta do avião, o calor e a umidade nos deram as boas-vindas. Bem-vindos a Manaus, a metrópole amazônica. Com pouco mais de de 2 milhões de habitantes, a cidade está engastada no meio da floresta.

No trajeto do aeroporto até a casa de nosso anfitrião local passamos por boa parte da cidade, incluindo as obras do estádio que abrigará alguns jogos da Copa de 2014, mensagens de boas-festas de uma senadora em alguns outdoors, muito comércio popular e pessoas por todo lado com fortes traços indígenas, gente linda, forte e curiosa sobre nós.“Oi, falam português?”, perguntou um guia turístico local ainda no aeroporto.

No bairro do Coroado, zona leste da cidade, o Arthur (namorado de uma amiga de infância do João, lá de Bauru) já nos esperava há um bom tempo. Cara simpático, robusto, traços igualmente fortes, professor de história recém-aprovado no concurso da rede estadual, nos aguentaria durante muitas conversas pelos dois dias que se seguiram.

Depois de um banho e uma soneca curta, pegamos um ônibus para o centro da cidade e passamos os pontos turísticos desertos: a Praça da Saudade recentemente restaurada, as construções antigas do ciclo da borracha, o Teatro Amazonas e o calçamento português do largo em frente a ele, onde ondas pretas e brancas como as das calçadas de Copacabana (que o Arthur diz que foram cópia dali) aludem ao encontro das águas. Ainda fomos ao porto buscar informações sobre o próximo barco para Juruti e Santarém.

Quando faltavam 40 minutos para a chegada de 2012, estávamos no terminal de ônibus chamado de T1. A intenção era tomar a linha 120 para chegar a tempo de ver a queima de fogos na orla do rio Negro. Mas o tal coletivo nunca chegou e ali mesmo, aos abraços, compartilhamos a virada de ano. Pouco tempo depois resolvemos andar. Caminhamos por mais de três horas até a Ponta Negra, onde o rio faz uma prainha.

Era um dos quatro pontos da cidade em que a prefeitura havia organizado shows para a programação oficial da virada. Quase lá, avançávamos contra a corrente das muitas famílias, casais e grupos de amigos que voltavam da comemoração com sandálias nas mãos, crianças e bebês adormecidos nos colos, rostos cansados e felizes apinhando os pontos de ônibus à espera dos primeiros carros da madrugada — do ano.

Na Ponta Negra, com os músculos e os pés doídos, nos juntamos a muita gente que ainda permaneceu na orla, conversando na areia ou tomando banho. A praia nesse ponto desce suave, sem tombo, e entrando no rio o corpo sentiu aos poucos o calor (mesmo na madrugada) das águas pesadas, escuras, macias do rio Negro. As roupas ficaram no último banco de areia da prainha (daquele ponto em diante, máquinas da prefeitura faziam obras na praia durante a noite toda, talvez para ampliar a área do pequeno balneário) e passamos o restante das horas escuras dentro das águas, até o nascer do sol. Assistimos, mergulhados no rio Negro, ao ano amanhecer.

Manaus está na margem norte do rio Negro. De onde olhávamos, à esquerda era o caminho de quem sobe o rio até chegar a São Gabriel da Cachoeira, último município do Amazonas e fronteira com a Colômbia e a Venezuela. À nossa direita era o leste: víamos a ponte que liga a metrópole à outra margem (cuja construção começou há oito anos, foi encerrada há dois meses e cheira a superfaturamento, e cuja inauguração contou com a presença da presidenta Dilma que, segundo o Arthur, não aguentou o calor e desistiu da travessia); víamos também os primeiros clarões do sol trazendo o dia 1º de janeiro, e víamos as luzinhas do porto de onde devíamos sair no dia seguinte, segunda-feira, para descermos o rio Amazonas e chegarmos ao Pará.

O encontro do rio Negro com o Solimões fica um pouco para a frente de Manaus, algo como meia hora depois da partida do barco. Aí vimos, hoje, as águas barrentas do Solimões se juntarem às nossas águas negras para formar, a partir daí, o Amazonas.

Esta é a primeira viagem que o navio-motor Luan, barco de ferro de três andares, faz na linha Manaus – Oriximiná (antes ele navegava entre Santarém e Macapá). Sairá daqui toda segunda às 12h para chegar em Orixi nas terças, descansar por dois dias e voltar nas quintas-feiras. Nosso destino fica pouco antes de Oriximiná: é a cidadezinha de Juruti, próxima ao Lago Grande do Curuai, rica em bauxita que é explorada pela Alcoa, gigante internacional da produção de alumínio. Depois de passar a noite nas redes amarradas no segundo andar do barco, devemos chegar pelo final da manhã.

Agora às 20h20 o céu já não tem resto nenhum de luminosidade, e neste trecho também não se veem luzinhas nas margens do rio; o céu está nublado e o nosso barco avança rápido no escuro total do rio Amazonas.